Fábio Cury, CEO da Cury, na região do Porto Maravilha: incorporadora foi a primeira a apostar no mercado imobiliário residencial da região portuária (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter de Invest
Publicado em 25 de abril de 2024 às 06h00.
Última atualização em 5 de maio de 2024 às 18h44.
Às margens da Baía de Guanabara, a zona portuária do Rio de Janeiro conta uma história de decadência e renascimento. Porta de entrada do Brasil nos tempos do Império, o porto carioca foi perdendo espaço e prestígio ao longo dos anos, e chegou ao século 21 como uma área degradada, onde ninguém tinha interesse em morar — ou investir. Em 2024, no entanto, a situação é outra.
“Quatro anos atrás, o porto não tinha nenhuma representatividade em lançamentos no Rio de Janeiro. Hoje, é campeão de vendas de unidades, ultrapassando, inclusive, a Barra da Tijuca”, afirma Claudio Hermolin, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio de Janeiro (Sinduscon-Rio).
Uma pesquisa do Sinduscon mostrou que, em 2023, o Porto Maravilha foi responsável por 42% dos lançamentos na cidade, enquanto a Barra ficou com uma fatia de 29%. E, quando os empreendimentos começarem a ser entregues, a população local poderá aumentar em até 70%, segundo a Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPar).
O novo “descobridor” do potencial imobiliário do porto carioca saiu de São Paulo. A incorporadora e construtora Cury foi a primeira a apostar na região — uma aposta alta e, no início, solitária. Dos 13 empreendimentos já lançados no porto, 12 são da Cury. O primeiro veio em junho de 2021, e, de lá para cá, a empresa aumentou o apetite na área, lançando 6.007 unidades.
“Foi feita uma revitalização magnífica na região, criando um bairro que é o sonho de qualquer empreendedor imobiliário. Normalmente, no Brasil, ocorre o contrário: desenvolvemos o empreendimento e torcemos para que o poder público leve a urbanização. Lá, o bairro já estava pronto para ser empreendido — e vazio”, conta Fábio Cury, CEO da incorporadora.
A revitalização citada pelo executivo é o Porto Maravilha, maior projeto de revitalização urbana atualmente em curso no Brasil. Lançado em 2009, o Porto Maravilha pretendia incrementar a infraestrutura da região portuária e atrair grandes centros comerciais para ocupar o lugar de galpões e terrenos em desuso. A reforma urbana mudou a cara da região, com a demolição do Elevado da Perimetral e a construção de pontos turísticos, como o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio (MAR). Com a casa arrumada, a expectativa de atração do mercado era grande, com rumores até mesmo de uma possível Trump Tower construída no local. O sonho da “Manhattan carioca”, no entanto, nunca saiu do papel.
O ano de 2014 marcou o início de um período de tensão para o projeto, que, nos seis anos seguintes, enfrentou crise econômica, encolhimento do apetite do mercado imobiliário, mudança na gestão municipal e, por fim, a pandemia de covid-19. Alguns poucos prédios espelhados surgiram nesse meio-tempo, mas não havia demanda para mais — pelo menos no segmento comercial.
A retomada começou em 2021, já com outra lógica. “O pós-pandemia tirou o foco dos escritórios, e o mercado percebeu uma oportunidade no [setor] residencial. Havia terrenos gigantescos vazios. A Cury foi pioneira em apostar em algo em que nenhuma outra empresa colocava expectativas. E essa aposta no residencial foi endossada e potencializada pela prefeitura”, argumenta Gustavo Guerrante, presidente da CCPar, órgão criado para estruturar contratos de concessões de parcerias público-privadas (PPPs) no município.
A ideia de empreender no porto surgiu durante uma viagem de táxi a caminho do escritório no centro da cidade, bem próximo à região portuária. “Víamos os VLTs [Veículo Leve sobre Trilhos] passando sem passageiros e um bairro cheio de terrenos disponíveis. Falei para o nosso diretor do Rio: ‘Isso aqui está perfeito para ser um bairro de classe média’”, relembra o executivo da Cury. O bairro é, na verdade, uma junção de outros cinco — Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Caju e parte do Centro —, perímetro que forma a Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) do Porto Maravilha.
A Cury lançou nove empreendimentos na área original do Porto Maravilha e outros três na região de expansão do programa (veja quadro). Os prédios da incorporadora no porto são focados em condomínios econômicos. Os apartamentos custam de 300.000 a 500.000 reais, valor que abarca parte da faixa 3 do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), que vai até 350.000 reais, e também o que a Cury chama de “faixa 4” — um segmento logo acima do teto do programa. Dos 12 empreendimentos da construtora, apenas um fica fora do MCMV: o Rio Wonder, condomínio com três torres e 1.224 unidades. Primeiro empreendimento lançado no porto, o Rio Wonder está com a entrega prevista para junho deste ano. A demanda tem sido alta, e 88% dos lançamentos já foram vendidos.
A mudança veio a passos lentos, após negociação com a Caixa Econômica Federal, maior investidora do Porto Maravilha. A Caixa arrematou por 3,5 bilhões de reais todos os 6,4 milhões de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) emitidos pela prefeitura para financiar a revitalização urbana do porto — destes, 5,2 milhões ainda estão em estoque. Os Cepacs permitem a construção de prédios acima do gabarito mínimo fixado para a região, então são essenciais para as construtoras que querem construir prédios mais altos — elas são obrigadas a comprar tanto o terreno quanto o potencial construtivo. Logo, quem quisesse construir no porto teria de negociar com a Caixa.
Segundo agentes do mercado ouvidos pela EXAME, a Caixa tinha a expectativa de que os empreendimentos fossem, em sua maioria, comerciais — em geral mais rentáveis que os residenciais. Por isso, houve certa resistência em abrir o porto para a construção de apartamentos econômicos. “Houve todo um trabalho de convencimento com a Caixa para fazê-los mudar a vocação da região”, diz o CEO da Cury.
Em nota, a Caixa informou que observou uma demanda do mercado incorporador e da população por empreendimentos residenciais na região ao longo dos anos. “Em 2021, foram concluídos os primeiros negócios para empreendimentos residenciais no porto, frutos de negociações que se estenderam por anos. A Caixa mantém discussões constantes com as incorporadoras, para manter as perspectivas alinhadas”, comunicou a empresa.
Segundo a Cury, as negociações com a Caixa duraram quatro anos. A construtora investiu 400 milhões de reais entre Cepacs e terrenos para construir seus empreendimentos no porto. “Houve muita negociação para a aquisição dos terrenos também. Ninguém sabia qual era o preço ideal. Muitos proprietários ainda tinham aquela ideia da Manhattan carioca na cabeça, que precisou ser revista”, conta o CEO.
Com o sucesso da empreitada, a Cury lançou, no início de abril de 2024, seu maior projeto no Porto Maravilha. A incorporadora assumiu o esqueleto do Porto Vida, paralisado com a crise imobiliária da cidade, depois de comprar o empreendimento da Caixa Econômica Federal e da empresa Porto 2016 Empreendimentos Imobiliários.
Rebatizado de Heitor dos Prazeres — Condomínio Pierrot, o empreendimento terá 1.782 unidades, que medirão entre 33 e 65 metros quadrados. Esse é o primeiro projeto da Cury que busca uma integração com a cultura local. O nome do condomínio é uma homenagem ao compositor e pintor Heitor dos Prazeres, que cunhou o termo “Pequena África” para se referir aos bairros e comunidades no entorno do porto, tradicionalmente habitado por descendentes de africanos escravizados. Locais históricos como a Pedra do Sal, reduto do samba carioca, e o sítio arqueológico do Cais do Valongo, que foi o principal cais de desembarque do tráfico negreiro no Brasil, estão entre os principais pontos históricos da região.
A EXAME esteve no lançamento do condomínio Heitor dos Prazeres para corretores e investidores, que ocupou a Praça Mauá, na região do porto, no fim da tarde do dia 4 de abril. Entre os convidados estava a família de Heitor dos Prazeres, que foi envolvida no projeto e autorizou murais com pinturas do artista na lateral do empreendimento que leva seu nome.
Os holofotes, no entanto, ficaram com o prefeito Eduardo Paes, pai do projeto Porto Maravilha, lançado nos anos de sua primeira gestão à frente da capital fluminense. “Eu não tenho dúvida de que estamos vivenciando a maior transformação urbana da história desta cidade. Tínhamos a proposta ousada de fazer desta região o novo sonho das famílias cariocas e daqueles que nos visitam. E é muito bom ver esse sonho se tornando realidade”, discursou o prefeito.
Desde que Paes reassumiu a gestão municipal, houve um novo foco da prefeitura na região central, com a expansão da área original do Porto Maravilha e o lançamento de duas fases de outro programa, o Reviver Centro. Perguntado sobre a participação da Cury na mudança de vocação do porto, o prefeito não poupou elogios à empresa.
“Se não fossem a confiança e a ousadia da Cury, dificilmente estaríamos nesse patamar hoje: ela é a grande sócia da prefeitura e do carioca nesta nova-velha área da cidade. Esperamos que outras construtoras venham acompanhando esse movimento”, disse à EXAME.
Os concorrentes já estão vindo: a construtora Emccamp lançou no porto um empreendimento de cinco torres, com 1.472 unidades. E, diferentemente da Cury e da Emccamp, que ergueram prédios do zero, existem outros dois projetos de retrofit em andamento que vão reformar e relançar prédios antigos. O icônico edifício A Noite, localizado na Praça Mauá, de frente para o Museu do Amanhã, foi comprado no ano passado pela Azo Incorporadora. O prédio, que já foi sede da Rádio Nacional, deve se tornar um condomínio residencial de 400 unidades. Outro edifício vendido foi um antigo prédio de estilo art déco, localizado ao lado da Pedra do Sal. Antiga sede da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) e, depois, do Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea), o imóvel vai se tornar um residencial de 140 unidades.
O interesse das incorporadoras no Porto Maravilha cresce na esteira do apetite da população, que comprou a ideia de morar mais perto do centro da cidade, em um bairro cercado de opções de transporte. A receita não é nova: trazer imóveis econômicos para perto dos locais de maior infraestrutura da cidade é uma estratégia da Cury também em São Paulo. Isso acontece desde o lançamento do Plano Diretor da cidade, em 2014, que permitiu o adensamento da capital no entorno dos chamados eixos de transporte — regiões ao redor das estações de trem e metrô, e dos corredores de ônibus.
“Temos empreendimentos no Jardim Guedala, a 15 minutos da Vila Olímpia [bairro nobre da capital paulista]. Alguns anos atrás seria impossível imaginar prédios de 250.000 reais próximo a essas regiões. E, hoje, quem mora nos nossos condomínios não leva 2 horas para chegar ao trabalho”, diz Fábio Cury.
São Paulo ainda representa dois terços do faturamento da incorporadora e, por ser seu maior mercado, serve de inspiração para a estratégia na capital fluminense, onde a empresa acaba de completar 15 anos de atuação. O Porto Maravilha foi o primeiro passo desse modelo que a Cury conseguiu implementar no Rio, mas a empresa já considera novas oportunidades com o recém-aprovado Plano Diretor da cidade. Assim como em São Paulo, a expectativa é que o plano destrave oportunidades de investimento imobiliário em bairros cariocas que já possuem boa infraestrutura.
“O Plano Diretor simplificou e padronizou os potenciais construtivos da cidade. A região sul já é sucesso absoluto, então o plano deve favorecer principalmente as regiões norte e oeste, além do Centro”, comentou Leonardo Schneider, vice-presidente do Sindicato da Habitação do Rio de Janeiro (Secovi-Rio). A zona oeste, no entanto, está fora dos planos da Cury: o objetivo é expandir do Porto Maravilha para a vizinha zona norte. O primeiro lançamento será no bairro de Irajá, ainda neste ano.
A ideia é continuar a expansão a partir do porto, passando para o bairro vizinho de São Cristóvão, que já foi a região mais nobre da cidade nos tempos do Império. É lá que está localizada a Quinta da Boa Vista, antiga residência imperial do Brasil: um palácio, hoje sede do Museu Nacional, cercado por um parque de 155.000 metros quadrados. “É um lugar lindo, histórico, que não é valorizado. Se fosse em São Paulo, os apartamentos em volta valeriam milhões”, afirma o CEO.
Apesar do “faro” para a alta renda, a Cury não tem planos de sair do segmento econômico — ainda mais quando todos os atores parecem estar jogando a favor do mercado de baixa renda. Os juros estão em tendência de queda, e o mercado de trabalho está aquecido, com avanço da renda. A inflação, que tanto machucou as construtoras com os preços das matérias-primas, está arrefecendo.
E a cereja do bolo é o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), maior programa habitacional do país, que ganhou os holofotes no ano passado com a volta do governo Lula. Em julho de 2023, o MCMV foi turbinado com o aumento do subsídio para a aquisição dos imóveis e redução dos juros de financiamento para famílias com renda mensal de até 2.000 reais. Além disso, o governo ampliou as faixas de renda e aumentou o valor máximo do imóvel que pode ser adquirido na faixa mais alta, que passou de 264.000 para 350.000 reais.
A Cury não abre a previsão dos números para 2024, mas projeta um ano de forte crescimento. “É um alinhamento de astros: nunca houve um momento tão propício para o Minha Casa, Minha Vida. Pretendemos aproveitar”, diz.
A empresa costuma concentrar os lançamentos no início do ano, e já foram dez neste primeiro trimestre — cinco em São Paulo e outros cinco no Rio —, totalizando um VGV histórico de 1,88 bilhão de reais, alta de 32,7% em comparação com o mesmo período do ano anterior. No acumulado de 2023, a Cury teve um resultado recorde — o terceiro desde a abertura de capital, em 2020. A empresa registrou avanço de 42,3% no lucro líquido, que alcançou 495,6 milhões de reais. A geração de caixa segue firme, e não há planos de financiar a toada de crescimento com uma nova captação no mercado (follow-on).
Fundada pelo pai de Fábio em 1963, a companhia encontrou seu ponto de virada em 2007, quando formou uma joint venture com a Cyrela. “Foi nessa época que viemos de São Paulo para o Rio. Visitamos diversas cidades e foi aqui que o mercado pareceu mais promissor para nossa estratégia”, conta o executivo.
A Cury estreou na bolsa em setembro de 2020, e a Cyrela participou da oferta como vendedora, diminuindo sua participação de quase metade da empresa para apenas 21,1%. As ações da Cury avançaram 169% na bolsa desde a oferta pública inicial de ações (IPO), e são os papéis com segundo melhor desempenho acionário entre as construtoras de baixa renda, atrás apenas da Direcional (veja o quadro).
Ao contrário de alguns pares, a construtora não pretende ir além das fronteiras das duas capitais em que já atua. São Paulo é o mercado mais pujante do país e, no Rio, a Cury está com a ambição renovada depois de ter liderado a retomada imobiliária do Porto Maravilha.