Revista Exame

Como a articulação do PIB gaúcho criou um "verão das startups" nos pampas

Sede do South Summit, Porto Alegre vive uma efervescência de startups alheia à crise global e impulsionada pelo Instituto Caldeira, hub de negócios aberto por 40 empresários em 2021 e que já abriga mais de 100 empresas de tecnologia

South Summit Brazil, em Porto Alegre: edição brasileira do festival já reúne mais gente que a versão original, em Madri (Agência Preview/Divulgação)

South Summit Brazil, em Porto Alegre: edição brasileira do festival já reúne mais gente que a versão original, em Madri (Agência Preview/Divulgação)

Leo Branco
Leo Branco

Editor de Negócios e Carreira

Publicado em 20 de abril de 2023 às 06h00.

Última atualização em 20 de abril de 2023 às 16h35.

PORTO ALEGRE — Num cenário de ressaca global do venture capital, vem do Rio Grande do Sul um bom exemplo de como recuperar o ânimo de lideranças empreendedoras — e dos ganhos possíveis quando empresas, universidades e governo conseguem chegar a consensos para melhorar o ambiente de negócios. Até bem pouco tempo atrás, os gaúchos viviam uma maré de notícias ruins. O governo estadual estava quebrado. Desde 2015, os funcionários públicos recebiam os salários em atraso.

Para ajudar o governo a fazer caixa, os gaúchos passaram a pagar uma alíquota de ICMS entre as mais altas do país em itens como gasolina e cesta básica. A crise nas finanças foi acompanhada de uma onda de criminalidade com assaltos e tiroteios até em bairros nobres da Grande Porto Alegre.

Enquanto isso, a vizinha Santa Catarina vivia um boom de startups abertas por empreendedores de vários lugares (muitos deles do Rio Grande do Sul), com um misto de impostos mais baixos, maior sensação de segurança e contatos estreitos entre governo e iniciativa privada para resolver dores de cabeça comuns a quem toma decisões num negócio, como a escassez de mão de obra qualificada ou a falta de segurança.

De lá para cá, muita coisa mudou para melhor nos pampas — e boa parte do PIB gaúcho está tendo um papel relevante na virada. Cansado de perder cérebros e negócios para outros locais, um grupo de mais de 40 empresários vem se reunindo desde 2018 no Instituto Caldeira, uma organização do terceiro setor dedicada à agenda de transformação digital não apenas dentro das próprias empresas dos fundadores mas também na sociedade gaúcha como um todo. “A agenda de inovação precisava de um impulso no estado”, diz José Galló, CEO da varejista Renner até 2018, quando passou a dividir o tempo entre o investimento e o conselho do Caldeira, do qual é um dos sócios-fundadores. “Temos ótimas universidades aqui, mas a mão de obra ia embora por falta de oportunidades.”

Qual é a referência para o Caldeira

O que começou com uma conversa entre empresários capitaneada por lideranças de negócios gaúchos — como Marciano Testa, fundador do banco Agi, um dos líderes nacionais em empréstimos consignados; Rodrigo Vontobel, CEO da fábrica de chocolates Neugebauer; e Frederico Logemann, da família fundadora do gigante das commodities SLC Agrícola — virou uma medida concreta em dezembro de 2020, com a abertura de um espaço físico para conexão entre startups e grandes empresas.

Localizado num galpão de 22.000 metros quadrados na zona norte de Porto Alegre, onde por décadas a Renner teve uma de suas principais tecelagens, o Caldeira é hoje para Porto Alegre o que o Cubo, hub de startups a poucos quilômetros da Avenida Faria Lima, tem sido para São Paulo desde a inauguração, em 2015: “o” local para trocar ideias sobre modelos de negócios, encontrar profissionais de tecnologia com vontade de trilhar carreira numa startup e até mesmo captar recursos.

O conceito segue a filosofia do third place, difundida pelos executivos da Starbucks. O terceiro espaço em questão é um ambiente de reuniões informais e descontraídas, fora de residências e de espaços corporativos convencionais — uma ambição de dez em dez lojas da rede global de cafeterias. “Ela é nossa referência”, diz Testa, do Agi, tido pelos pares como um entusiasta de primeira hora do projeto. “Queremos um local para as pessoas fazerem tudo por aqui.”

Parte da ambição de Testa já saiu do papel e dá um quê de Vale do Silício aos arredores. Uma unidade de autoatendimento da Starbucks foi instalada no Caldeira no ano passado. Os escritórios são rodeados por jardins com mesinhas para bate-papos informais. Um shopping center de decoração no quarteirão ao lado, há algum tempo em processo de deterioração, foi renovado com a abertura de uma praça de alimentação com marcas descoladas.

Atualmente, 100 empresas estão no Caldeira, entre startups e laboratórios de inovação de pesos-pesados do capitalismo gaúcho, como a plataforma de dados financeiros Nelogica, a SLC Agrícola e o Agi. Para fazer parte, a interessada paga uma assinatura a partir de 1.600 reais no caso de startups e de 2.400 reais para as grandes. Outras 350 empresas pagam apenas para ter acesso à programação de palestras realizadas ali mesmo, num anfiteatro sem paredes cuja entrada é liberada a todos os funcionários das “assinantes”. “Queremos com isso fomentar boas conexões entre os membros da comunidade Caldeira”, diz o diretor executivo, Pedro Valério.

Quem já colheu os frutos da iniciativa

Por dia, 1.500 pessoas circulam pelo espaço. Uma parte relevante do público é de alunos de escolas públicas e selecionados para cursos de tecnologia custeados pelo Caldeira. Gente de fora de Porto Alegre também dá as caras, a exemplo de executivos de big techs como Amazon, Google, Microsoft, Salesforce e Oracle, parceiros das aulas oferecidas.

O bochicho criado por empreendedores atraiu também gente da academia. As três principais universidades da Grande Porto Alegre — PUC-RS, UFRGS e -Unisinos — são parceiras do projeto, e os pesquisadores das instituições têm cadeira cativa nos eventos. Até mesmo as autoridades locais aderiram. No fim de 2021, a sede da Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Porto Alegre foi transferida para o local. A gestão do governador Eduardo Leite (PSDB) tem sido parceira do Caldeira no mapeamento das startups gaúchas.

Em pouco mais de dois anos, o Caldeira já tem resultados para mostrar. Em 2023, o orçamento deve bater entre 27 milhões e 30 milhões de reais, oriundos de assinaturas da comunidade, aluguel de espaços para eventos e uma pequena parte vinda de doações. É o triplo do valor de 2021, o primeiro ano completo do projeto.

De lá para cá, pelo menos três startups levantaram recursos após a visibilidade conseguida por residirem no espaço. São casos como o do Yours Bank, fintech para educação financeira de crianças e adolescentes, que captou 5 milhões de reais do Banco do Brasil em agosto de 2022, ou da Tecredi, desenvolvedora de uma plataforma de crédito automotivo investida em dezembro do ano passado da suíça Credix, uma financiadora de fintechs com criptomoedas.

(Arte/Exame)

Para os empresários idealizadores do projeto, os frequentadores são potenciais fornecedores. Vide o caso da SLC, dona de 670.000 hectares de área plantada com algodão, milho e soja em sete estados, e da agtech Elysios, dona de uma tecnologia de sensores para monitoramento de indicadores do plantio, como umidade do solo. A presença de ambas no Caldeira rendeu uma parceria num projeto piloto de uma estufa para colheita de legumes instalada nos fundos do escritório da SLC no hub e monitorada com o software da Elysios.

A boa relação rendeu um contrato para a agtech cuidar de outros projetos da SLC. “Fazemos lives para a empresa inteira sobre as inovações que vemos por ali”, diz Logemann, responsável pelo braço de venture capital da companhia, cujo faturamento supera 7,4 bilhões de reais. Há ainda quem aproveite para encurtar distâncias de gente boa no mercado. “Estamos de olho na contratação de jovens formados nos programas de capacitação em tecnologia”, diz Marcos Boschetti, fundador da Nelogica.

Como o South Summit foi para Porto Alegre

O impacto de um hub como o Caldeira para o ambiente de negócios de um estado inteiro é algo para lá de intangível. O fato é que a articulação entre o empresariado e as autoridades locais tem sido fundamental para colocar os negócios gaúchos de volta no radar. Graças à iniciativa do governo Leite e a de empresários como José Renato Hopf, fundador da GetNet e da empresa de tecnologia 4all, no mês passado Porto Alegre foi sede, pelo segundo ano consecutivo, da edição brasileira do South Summit, um festival criado em Madri em 2012 para reunir empreendedores e fundos de investimento.

Em 2023, 22.000 pessoas circularam pelo Cais Mauá, até então uma região abandonada na orla da capital gaúcha, em busca de bons negócios. São 7.000 visitantes a mais do que na última edição espanhola. Cerca de 600 fundos, com 123 bilhões de dólares em carteira, estiveram no evento em Porto Alegre neste ano, o dobro de 2022.

Espaço de eventos do Instituto Caldeira: inspiração na Starbucks para um ambiente descontraído de trabalho (Jonas Adriano/Divulgação)

Somada a uma gestão das contas públicas mais eficiente (cortes de despesas deram margem para reduções de ICMS e para o pagamento em dia dos servidores estaduais desde 2020) e a uma queda nos índices de criminalidade, Porto Alegre vive uma efervescência tech de causar inveja aos vizinhos catarinenses.

Uma evidência disso é o volume de star-tups gaúchas no radar do Distrito, que mantém um hub de dados sobre startups. No último relatório, de 2022, havia 1.144 negócios de tecnologia, o triplo do visto em 2019. Seis em dez das startups gaúchas na lista do Distrito estão em Porto Alegre. “Estamos virando referência para outras cidades interessadas em criar um bom ambiente para o empreendedorismo”, diz Testa, do Agi.

O que tirar de lição dos pampas?

Como replicar a experiência do Caldeira em outros locais? Uma lição fundamental para os empresários envolvidos no projeto tem sido focar o bem comum. “Até então, no Rio Grande do Sul havia muita disputa pelo protagonismo de projetos como esse”, diz Rodrigo Vontobel, da Neugebauer. “A governança do Caldeira tem dado certo porque as vaidades foram colocadas de lado.”

O envolvimento direto de pesos-pesados do PIB nas tomadas de decisão também ajuda. Pelo menos uma vez por mês, os sócios-fundadores vão ao espaço para ouvir a prestação de contas e sugerir melhorias na gestão do espaço. Desses encontros já surgiram projetos para ampliar o Caldeira para um prédio vizinho do galpão atual.

Em outra frente, articula-se com construtoras locais a aquisição de terrenos nos arredores para erguer prédios residenciais. A despeito da crise global, o ânimo nas reuniões é dos melhores — para o bem dos empreendedores de dentro e de fora do Rio Grande do Sul.

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