A brasileira Thelma Krug, vice-presidente do IPCC, órgão da ONU para estudos climáticos (Leandro Fonseca/Exame)
Rodrigo Caetano
Publicado em 11 de fevereiro de 2021 às 05h34.
Última atualização em 26 de fevereiro de 2021 às 15h42.
A pesquisadora brasileira Thelma Krug é uma das cinco vice-presidentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), organização criada em 1988 pela ONU, que tem o objetivo de reunir e sintetizar os estudos acadêmicos produzidos sobre os motivos e as consequências do aquecimento global. A cada seis anos, o IPCC publica um relatório de 5.000 páginas contendo tudo o que a ciência conhece sobre mudanças climáticas. Junto com o documento, é feito um sumário em linguagem mais simples, para que os governos-membros do painel — são 195, espalhados pelo mundo — consigam compreender os dados e utilizá-los em suas políticas climáticas.
Formada em matemática, com Ph.D. em estatísticas espaciais pela Universidade de Sheffield, no Reino Unido, Krug representou o Brasil por 15 anos nas negociações no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), um tratado estabelecido na Eco-92, no Rio de Janeiro, que estabelece diretrizes para a estabilização dos gases de efeito estufa na atmosfera. Além disso, a pesquisadora ocupou cargos executivos nos ministérios da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente, ao longo da década passada.
Desde 2018, Krug percebe uma maior politização do debate sobre mudanças climáticas. Movidos por interesses próprios, governos têm usado as lacunas existentes nos estudos científicos, naturais em qualquer trabalho, para colocar em dúvida as certezas que a comunidade científica já tem há muito tempo, segundo a pesquisadora. Pode ser uma estratégia de negociação. Mas usar o negacionismo para definir planos de governo é uma ideia que, certamente, dará errado, segundo ela. Somente a ciência oferece as ferramentas necessárias para a tomada de decisão.
A pesquisadora também afirma que, sem as empresas, é impossível manter o aquecimento global em níveis seguros. Ela, inclusive, está se aproximando do mercado ao participar do conselho da Grape ESG, uma plataforma voltada para a divulgação de conteúdo e a oferta de consultorias para companhias que desejem iniciar uma jornada sustentável. Por videoconferência, Krug falou com a EXAME.
Qual é o papel das empresas na luta contra o aquecimento global?
Não é possível alcançar as metas de redução de carbono sem as empresas. Existe um apoio do setor empresarial para essa causa. Veja as petroleiras. Elas estão se mexendo porque estão preocupadas e acreditam no aquecimento global. Estão mudando seus negócios. Mas, enquanto tem demanda, tem “business”.
O que fazer para engajar mais as empresas nessa luta?
O que precisamos é de uma transformação completa na forma como produzimos e consumimos. As empresas terão de fazer mudanças sem precedentes na matriz energética, nos processos industriais e na agricultura. Como consumidores, também teremos de mudar alguns hábitos, como desperdiçar menos. As mudanças climáticas são o grande desafio global deste século. Elas ameaçam o desenvolvimento e intensificam as desigualdades. A ciência mostra que é possível limitar os efeitos do aquecimento global. Para isso, cada ação e cada ano contam.
A meta definida no Acordo de Paris, de manter o aumento da temperatura global em 1,5 °C até 2050, será alcançada?
É muito difícil, mas não é impossível. As emissões de gases de efeito estufa precisam cair pela metade até 2030. Para isso, será necessária uma transformação na economia sem precedentes. Depende de cada um de nós, na verdade. Das empresas, principalmente. E é preciso reconhecer a ciência e fazer direito. O que está se falando, agora, é sobre ter integridade ambiental. Cada país deve reconhecer seu papel e dar sua contribuição. O risco que os países correm, caso não compreendam este momento, é de ficar isolados.
Essa transformação envolve o desenvolvimento de tecnologias?
A questão é se temos tempo para esperar o desenvolvimento de novas tecnologias. Há estudos sobre como modificar a radiação do Sol, por exemplo. Partículas expelidas por vulcões em erupção podem ajudar a esfriar o planeta rebatendo parte da radiação. Uma ideia seria aumentar artificialmente o volume dessas partículas. Porém, não vai resolver a tempo de evitar o aquecimento do planeta acima de 1,5 grau até 2050. O que precisamos é reduzir as emissões.
Há ainda alguma divergência na comunidade científica sobre o aquecimento global?
Não existe divergência. Há uma produção científica extensa a respeito. Desde a criação do IPCC, em 1988, a produção de relatórios é sistemática. Nosso trabalho é avaliar todas as publicações científicas sobre mudanças climáticas com base em três aspectos: clima, adaptação e mitigação. A cada seis anos é publicado um relatório de 5.000 páginas. E os governos-membros, que são 195, podem solicitar relatórios específicos.
Esses relatórios embasam as políticas climáticas dos países?
Sim, e também balizam as discussões nas Conferências do Clima da ONU [COPs, realizadas anualmente]. Junto com o relatório, é publicado um sumário com uma linguagem de fácil entendimento pelos governos. Os dados são aprovados por consenso entre os membros, que podem questionar os resultados e fazer anotações no relatório. Porém, o que prevalece é a ciência.
Nas COPs, as decisões não são políticas?
O IPCC faz a ligação entre a política e a ciência. Os relatórios fornecem subsídios para as negociações. As conferências do clima são um mundo à parte. As conversas acontecem em um nível muito alto. Cada palavra, cada vírgula é debatida. Não é possível manter esse tipo de negociação sem ter muita ciência envolvida. Nosso papel é mostrar se meio grau de aumento na temperatura global faz diferença ou não. Essa era uma pergunta dos governos, inclusive, que respondemos.
E faz diferença mesmo?
Meio grau faz diferença para os oceanos, por exemplo, que capturam 30% do carbono emitido. A contribuição humana para o aquecimento global é inequívoca. Até hoje, tivemos cinco relatórios. A cada edição, as análises se complementam e o entendimento sobre o que está acontecendo no clima aumenta. Os indícios vão ganhando força. Não sabemos tudo sobre carbono, mas o que vai para a atmosfera é muito bem medido. E as correlações entre a ação humana e o aumento da temperatura são muito claras. O problema é que as consequências das mudanças climáticas não serão iguais em todos os lugares, e isso faz com que os países busquem os próprios interesses. No Oceano Ártico, os efeitos das mudanças climáticas são três vezes maiores. O aumento de 1,5 grau é a média, mas pode ser menos, ou pode ser mais. Daí a importância de organismos como a ONU para coordenar os esforços de mitigação.
Essa busca por interesses próprios é o que gera o negacionismo climático de alguns países?
Sempre existem lacunas na ciência. E elas são reconhecidas nos relatórios. Ainda não temos certeza, por exemplo, dos efeitos do reflorestamento. Essa dinâmica de corta de florestas para posterior replantio não produz os mesmos resultados do que preservar a floresta nativa. O que não se deve fazer é questionar todo o conhecimento em razão dessas lacunas. Uma dúvida não anula as certezas. Essa tendência de maior politicagem em relação ao clima se intensificou a partir de 2018. Mas, na maioria dos países, as políticas climáticas são definidas com base na ciência. Até porque muitos já estão sentindo os efeitos das mudanças climáticas e estão preocupados.
O Brasil se enquadra nesse cenário?
O Brasil é um caso à parte. De qualquer forma, é importante ressaltar que, se os planos de um governo não têm por base a ciência, especialmente em relação ao clima, simplesmente não vão funcionar. Também não é possível ir na contramão do mundo.
Quanto se sabe sobre os efeitos do desmatamento na Amazônia?
A Amazônia é um dos ecossistemas mais estudados do mundo. Sabemos o que o desmatamento vai provocar. A produção científica brasileira sobre a floresta é imensa e de qualidade, mas é muito mal aproveitada. Há um potencial gigantesco de uso dessas informações.
É possível desenvolver a Amazônia sem destruí-la?
O Brasil sempre se negou a colocar a Amazônia “no mercado”. A questão é que as florestas precisam ficar de pé por 1.000 anos para compensar o carbono emitido. Com o desmatamento crescendo, e sem políticas claras para combater a destruição da floresta, é provável que a Amazônia perca capacidade de capturar carbono. Uma floresta também não é só árvore, é um ecossistema. Tudo isso precisa ser levado em conta pelo governo e pelas empresas na hora de desenhar planos para o desenvolvimento da região.
Em relação ao Artigo 6 do Acordo de Paris, que regulamenta o mercado de carbono global, o Brasil tem uma disputa com a Europa sobre a maneira de contabilizar os créditos. A posição brasileira é sustentável?
O Brasil cobra dos países desenvolvidos a transferência de fundos que foram negociados no âmbito do Acordo de Paris. O problema é que não está especificado quais países seriam beneficiados por esses fundos. Em negociações multilaterais, não é uma boa ideia adotar uma postura ameaçadora, dizendo que estão te devendo. É complicado sustentar essa posição. Ao mesmo tempo, o Brasil quer a validação de créditos antigos, gerados pelo Protocolo de Kyoto. A questão é que esses créditos eram temporários. O risco, para o país, é derrubar pontes que foram construídas com muito trabalho. As posições brasileiras sempre foram pautadas pela ciência e pela integridade ambiental. Essa mudança de postura, que se viu na COP25, em Madri, acabou privando o país de uma liderança importante.
A política ambiental do Brasil está prejudicando a imagem do país no exterior?
O Brasil pode perder oportunidades. Algumas ações do governo mandam um sinal ruim para o exterior. Nosso etanol, por exemplo, sempre esteve fora das polêmicas envolvendo o desmatamento na Amazônia. A indústria sucroalcooleira fez um bom trabalho para demonstrar que as áreas de plantação não estavam na região da floresta. Mas o governo revogou o decreto de zoneamento para o plantio de cana-de-açúcar [em janeiro de 2020]. De repente, todo o etanol brasileiro, mesmo fora da Amazônia, tem sua imagem prejudicada. Ao desmontar a estrutura de fiscalização ambiental, o governo também prejudica a imagem de todo o agronegócio.