Operação do pré-sal, no Rio de Janeiro: o leilão da cessão onerosa marcará a abertura definitiva do mercado brasileiro a petroleiras estrangeiras | Eldio Suzano/Fotoarena
Denyse Godoy
Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h50.
Última atualização em 25 de outubro de 2019 às 13h13.
Da Orla dos Cavaleiros, o calçadão à beira-mar de Macaé, é possível avistar à noite as luzes das plataformas e dos navios-sondas de petróleo, até 135 quilômetros mar adentro. É um lembrete diário de um negócio que está, mais uma vez, levando a cidade do norte fluminense a uma onda de excitação. Um megaleilão de petróleo vem aí e deve colocar Macaé de novo no mapa.
Conhecida como “a capital do petróleo”, Macaé passou por inúmeras transformações desde a descoberta dos primeiros poços na região em meados de 1970. Até então, a principal atividade econômica dos 30.000 moradores era a pesca. Com o desenvolvimento da produção de petróleo no mar, uma complexa cadeia de fornecedores se instalou próximo das operações locais da Petrobras. O grande salto veio na última década. Em meados de 2011, os preços do barril no mercado internacional dispararam e a camada pré-sal começou a se tornar comercialmente interessante. Macaé foi para 240.000 habitantes e multiplicou sua economia por 10 de 2000 a 2013. Com recursos de sobra, até granito foi colocado na orla da praia.
A fartura, porém, não durou muito: a derrocada das cotações em meados de 2014 coincidiu com os desdobramentos da Operação Lava-Jato. A cidade perdeu cerca de 40 000 empregos com carteira assinada. Indústrias, hotéis e estabelecimentos comerciais fecharam as portas. “Macaé ficou vazia. Foram os piores anos de nossa história”, diz Renato Nicoli, proprietário do tradicional restaurante Durval, fundado em 1984. Após a euforia e a depressão, Macaé está vendo a euforia voltar.
O motivo é uma série de novos leilões de petróleo (quatro rodadas desde 2017 e outros três neste ano). O maior deles é o do excedente da chamada cessão onerosa, agendado para 6 de novembro. Os novos projetos devem elevar a produção diária do Brasil de 3 milhões para 7 milhões de barris, o suficiente para fazer do país o quarto maior produtor do mundo na década de 2030 — atrás de Rússia, Estados Unidos e Arábia Saudita, pelo ranking atual.
É uma mudança de patamar que começou a ser construída em 2010, quando foi concedida à Petrobras, sem licitação, uma área na Bacia de Santos com reserva prevista de 5 bilhões de barris, por 74 bilhões de reais — a tal cessão onerosa. Após investimentos de 10 bilhões de reais, a estatal descobriu que os volumes eram muito maiores. O excedente pode variar de 5 bilhões a 10 bilhões de barris, ou seja, o volume total de óleo ali depositado pode chegar ao triplo do inicialmente imaginado. É esse adicional que será leiloado em novembro, com um bônus de assinatura esperado de 106 bilhões de reais. A projeção do governo para 2030 é que somente o excedente leiloado renda a produção de 1,2 milhão de barris por dia — o equivalente a 40% do óleo extraído atualmente no país.
Além do volume, o leilão é marcante por consolidar a abertura do mercado brasileiro. Até 2017, a lei obrigava petroleiras estrangeiras a ser sócias minoritárias da Petrobras no pré-sal. Há dois anos, com uma mudança na lei, todas passaram a competir igualmente. Ganha quem oferecer o maior bônus de assinatura e o maior percentual do óleo extraído ao governo. De lá para cá, houve quatro leilões em que estrangeiras entraram como operadoras na área do pré-sal.
Agora a nata das petroleiras globais vai participar do leilão. São 14 empresas habilitadas, entre elas as americanas ExxonMobil e Chevron, as chinesas CNODC e CNOOC e a norueguesa Equinor. Por se tratar de uma área com reservas praticamente comprovadas, o risco de exploração é tido como baixo; e o retorno do investimento, rápido: em média, o período entre a exploração e o início da produção leva cerca de dez anos, mas na área da cessão onerosa pode cair para até três anos, segundo especialistas. Será o maior e mais atraente leilão da história.
“As petroleiras vão formar parcerias estratégicas para levar esse leilão, justamente num momento em que o Brasil está com o câmbio favorável para os estrangeiros”, diz Anderson Dutra, sócio-líder de energia e recursos naturais da consultoria KPMG. “O leilão do excedente da cessão onerosa vai levar o Brasil a um novo patamar na indústria global”, diz Margareth Øvrum, presidente da petroleira norueguesa Equinor no Brasil.
Os investimentos necessários para explorar tamanho volume de petróleo no Brasil até 2030 são calculados em 1,7 trilhão de reais. Especialistas tratam o momento como o mais promissor da história do setor petroleiro no país, principalmente depois da deterioração do ambiente de negócios por anos seguidos. “A Petrobras reduziu muito as contratações em 2014 e o setor amargou uma forte crise. Mas agora vemos uma retomada da indústria de óleo e gás”, diz Hector Trabucco, diretor-geral na América Latina da americana Fluke, fabricante de equipamentos de medição e fornecedora da Petrobras. A Fluke projeta alta de 20% no faturamento com o setor de óleo e gás no Brasil em 2019. Um avanço que se apoia nos pedidos de terceirizadas da Petrobras e no aumento da atuação das petroleiras estrangeiras.
Para Décio Oddone, diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o Brasil precisa acelerar agora os investimentos em petróleo, em razão da demanda cada vez maior por uma matriz energética mais limpa. “Temos uma grande janela de oportunidade para aproveitar enquanto o petróleo ainda tem valor”, diz Oddone. Parte dessa espécie de “bônus do petróleo” já foi perdida nos últimos anos, quando o barril chegou a ser negociado na casa dos 100 dólares. De 2013 a 2017, não houve nenhuma licitação nas áreas do pré-sal. “São reservas que já poderiam estar produzindo, mas o Brasil perdeu aquele momento, e ele não volta mais”, diz David Zylbersztajn, especialista em energia que dirigiu a ANP de 1998 a 2001.
A tendência é diminuir a dependência do petróleo, mas ele continuará sendo um ótimo negócio por décadas. De acordo com a projeção da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), a participação do petróleo na matriz de energia global deverá cair dos atuais- 32% para algo em torno de 29% até 2040. Segundo a IEA, a demanda por petróleo poderá avançar a um ritmo máximo de 1% ao ano até 2040, enquanto o crescimento médio anual de renováveis como eólica e solar deverá ser de pelo menos 3,4%. O crescimento pequeno, mas contínuo, do consumo dos combustíveis fósseis virá de regiões como China, Índia, África e América Latina. “A transição para uma matriz mais limpa vai acontecer, mas os combustíveis fósseis continuarão sendo a principal fonte de energia no mundo pelos próximos 20 anos”, afirma Mark Zoback, presidente do Departamento de Geofísica da Universidade Stanford (leia mais no quadro abaixo).
O Brasil está especialmente bem posicionado para atender à nova demanda. Venezuela, Irã e Iraque, donos de algumas das maiores reservas do mundo, vivem em turbulência e sofrem constantes sanções, e a Arábia Saudita é alvo de crescente escrutínio internacional. “A magnitude da janela de oportunidades que o Brasil tem hoje talvez não aconteça mais”, diz Juarez Fontana, sócio da consultoria especializada em óleo e gás Argusplat.
As armadilhas
A abertura do mercado nacional a petroleiras estrangeiras é tema de discussões há mais de 60 anos. O primeiro poço de petróleo no Brasil data de 1939, num bairro de Salvador. O então presidente Getúlio Vargas criou a Petrobras em 1953 com a intenção inicial de atrair sócios estrangeiros para acelerar o desenvolvimento da indústria nacional, segundo o livro Petrobras: Uma História de Orgulho e Vergonha, da jornalista Roberta Paduan. O Brasil nem sequer tinha curso de geologia na época. Mas disputas políticas levaram Vargas a adotar o discurso “O petróleo é nosso” e a organizar a formação de quadros internamente.
O primeiro curso de engenharia do petróleo foi criado pela estatal, na Bahia, por uma equipe da Universidade Stanford trazida ao Brasil. Só no final da década de 70 o país atingiu a casa dos 200.000 barris por dia de produção média. Em 1984, alcançou 500.000 barris de média diária, com o avanço das descobertas em alto-mar. Nos anos 2000 os volumes superaram 1 milhão de barris por dia.
Em um país sem folga para o aumento de impostos e com lacunas sociais profundas, a notícia de que há uma fonte de bilhões de dólares embaixo do mar é excelente. Para os governos, é verba na veia na forma de royalties, pagos pelas empresas de exploração e distribuídos entre estados, municípios e União. Esses pagamentos já mais do que dobraram desde que o pré-sal começou a produzir, em 2010: a distribuição total de royalties e outras remunerações do petróleo saiu de 21,6 bilhões de reais, no primeiro ano, para 53 bilhões, em 2018, de acordo com a ANP. Segundo o Tesouro Nacional, as receitas da União com petróleo e gás chegaram ao recorde de 0,86% do produto interno bruto em 2019. É similar a tudo o que é recolhido em contribuições como PIS/Pasep (1% do PIB). Também é o suficiente para pagar quase duas vezes o Bolsa-Família (o programa custa 0,5% do PIB ao ano).
A cadeia produtiva do petróleo é responsável por 4% do PIB, segundo cálculos da Fundação Getulio Vargas — algo como 270 bilhões de reais em 2018. A tendência é de alta: com os novos leilões, a projeção do banco Standard Chartered é que a geração de riqueza da cadeia petrolífera poderá chegar a cerca de 700 bilhões de reais no final da próxima década — cerca de 8% de um PIB estimado em 8,6 trilhões de reais. “É uma bênção o Brasil ter esse tesouro. Precisa ser bem usado”, diz José Mauro Ferreira Coelho, diretor da Empresa de Pesquisas Energéticas.
O problema é que a combinação de recursos naturais com países emergentes costuma dar errado. É o que os economistas Jeffrey Sachs e Andrew Warner, da Universidade Harvard, eternizaram como “maldição dos recursos naturais”. Um estudo deles de 1995 mostrou que os países que, em 1971, tinham grande parcela do PIB em produtos básicos, no geral, cresceram menos do que seus pares nas duas décadas seguintes. O padrão é parecido em grandes produtores de petróleo, gás, minérios e alimentos.
Um dos efeitos frequentes é a chamada “doença holandesa”, fenômeno que retroalimenta a dificuldade de diversificar a economia para além dos produtos básicos: o país vende o recurso novo em volumes vultosos, recebe uma enxurrada de dólares, sua moeda fica forte e nenhuma outra indústria consegue mais exportar. Foi o que ocorreu com a Holanda — daí o nome — nas décadas seguintes à sua descoberta de gás em 1959. A alta volatilidade é outro traço recorrente. O PIB, a renda e os gastos dos governos tendem a crescer quando o preço das commodities está alto, mas caem e deixam um rastro de dívida pública tão logo o preço baixa — o ciclo de ascensão e bancarrota do Rio de Janeiro é uma parábola desse movimento. “A alta volatilidade resulta em baixos níveis de investimentos de longo prazo”, diz Rodrigo Cárcamo, chefe de economia da divisão de commodities da Unctad, braço das Nações Unidas para comércio e desenvolvimento.
Juan Luis Dammert, diretor na América Latina do Instituto de Governança em Recursos Naturais (NRGI, na sigla em inglês), coloca também a corrupção na lista de elementos comuns a países com indústrias extrativas robustas. “A corrupção se torna sistêmica, com agentes privados poderosos manipulando as instituições de acordo com benefícios próprios”, diz Dammert. É o que se vê na corrupta e depauperada Venezuela, dona das maiores reservas de petróleo do mundo. Outro risco é o ambiental, inerente às indústrias de extração. A mancha de óleo que se espalhou pelas praias do Nordeste é só um lembrete desse potencial de estrago (veja quadro abaixo). “Governos não podem esperar um acidente para criar uma regulação que traga segurança e reduza os riscos de acidentes”, diz Jan-Jaap Verschoor, analista que trabalha em Londres na consultoria Oil Analytics.
No Brasil, boa parte do roteiro perverso foi experimentado durante o ciclo de alta e baixa das commodities na última década. Os produtos básicos roubaram a cena, o real valorizou, a indústria minguou, o governo gastou muito e uma grave crise veio quando as cotações das matérias-primas caíram. Isso tudo ladeado por um esquema de corrupção de proporções inéditas. O estouro da Operação Lava-Jato, em 2014, veio quatro anos depois de a produção do pré-sal engrenar e desembaraçou um bilionário arranjo de desvios entre Petrobras, governos e empreiteiras. Segundo cálculos da Polícia Federal na Lava-Jato, o rombo na Petrobras pode chegar a 43 bilhões de reais. “Já pagávamos propina em obras públicas em todas as instâncias de governo havia muitos anos, mas os valores multiplicaram-se quando começamos a participar das licitações da Petrobras”, diz um executivo de uma das grandes construtoras que foram alvo da Lava-Jato e que ficou preso em Curitiba. Em cinco anos e após 65 fases, a operação devolveu 2,5 bilhões de reais à Petrobras.
Nesse meio-tempo, o Brasil reconfigurou as exportações. Os produtos básicos (como soja, minério de ferro e petróleo) e semimanufaturados (como açúcar, celulose e ligas metálicas) saíram de 38% das vendas externas, em 2000, para 65%, em 2019. Já a fatia dos industrializados murchou de 59% para 35%. Só a exportação de petróleo bruto multiplicou a participação por 20, de 0,5%, em 2000, para 10%, em 2018. A conta foi suficiente -para ter passado o Brasil para o lado de lá do recorte feito pela Unctad, que considera dependente de commodities um país que tenha pelo menos 60% das receitas de exportação vindas de produtos básicos. Os novos leilões de petróleo podem agravar o quadro. “O Brasil não tinha mais as exportações concentradas em produtos básicos desde os anos 60, quando a industrialização substituiu o café”, diz Welber Barral, secretário de Comércio Exterior de 2007 a 2011. Contribuíram para o enfraquecimento recente da indústria velhos problemas do Brasil, como gargalos na infraestrutura e tributação complexa.
A boa notícia é que, mesmo no mundo em desenvolvimento, há exemplos de países fartos em commodities com políticas que conseguiram usar bem os ganhos e evitar a doença holandesa. Um mecanismo forte entre vários deles é a criação de fundos soberanos, uma espécie de poupança pública abastecida pelos royalties. “Esses fundos servem de ferramenta de estabilização e podem ser fonte de recursos quando as commodities estão em baixa”, diz Ricardo Markwald, diretor-geral da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior. Noruega e Arábia Saudita são donas dos principais fundos desse tipo no mundo. Rússia, Timor Leste, Emirados Árabes e Catar também têm fundos soberanos.
No Chile, o fundo nacional começou a ser abastecido em 1987 pelas receitas do cobre, responsável por 50% das exportações do país. Hoje, sempre que a arrecadação do governo fica acima da meta, o excedente vai para o fundo. Nos momentos em que as contas ficam no vermelho, é possível usar os recursos do fundo para complementar o orçamento. Transparência e instituições fortes são outros itens da lista de boas práticas. Noruega e Austrália, com mais de 60% das exportações em petróleo e minério, são as grandes referências. Sites do governo trazem detalhes de quanto é arrecadado e onde são gastos os recursos. Na África, especialistas creditam aos bons níveis de transparência o sucesso de Botsuana em relação aos vizinhos. Com 90% das exportações em diamantes, o país é uma democracia de 53 anos e tem o maior índice de transparência do continente, além do quarto maior PIB per capita entre os 48 países da África subsaariana.
O Brasil já tem um fundo do gênero, mas está longe de ser um bom exemplo. O Fundo Social do Pré-Sal foi criado em 2010 com a função de acumular parte da renda com royalties e destiná-la a saúde, educação e outras áreas sociais. Não há, entretanto, informações claras e acessíveis sobre ele, e sua gestão segue, até hoje, sem regulamentação. Em nove anos de existência, o fundo ainda não teve as diretrizes de investimento definidas, e boa parte do dinheiro que já arrecadou — um saldo de 32,7 bilhões de reais até outubro, de acordo com a Secretaria-Geral da Presidência da República — está parada à espera de decisão.
Os royalties que chegam a estados e municípios têm destinos pouco claros. “A lei não permite que esses recursos sejam destinados para pagar pessoal, mas não há restrições para outros usos, como Previdência”, diz Magda Chambriard, pesquisadora da FGV Energia e diretora da ANP de 2008 a 2016. Além de não fornecer dados claros sobre o fundo do pré-sal, o governo ergueu uma cortina de fumaça em torno da cessão onerosa. As seguintes instituições, procuradas por EXAME, negaram-se a dar entrevista: Petrobras, Ministério da Economia, Ministério de Minas e Energia, Casa Civil e governo do Rio de Janeiro.
O leilão do excedente de petróleo da cessão onerosa marca uma virada de página para a Petrobras. A negociação com o governo federal para definir se e quanto a petroleira teria a receber pelos barris extras da área do pré-sal vinha se arrastando desde 2013. Os 34,6 bilhões de reais que a companhia vai receber devem ser usados para dar lances no leilão de novembro: a Petrobras, exercendo seu direito de preferência, manifestou interesse em participar da exploração dos blocos Búzios, onde já opera, e Itapu. O presidente da estatal, Roberto Castello Branco, considera que arrematar o direito de explorar novas áreas é essencial para garantir o crescimento da empresa
. Assim, a Petrobras voltará a focar a atividade que mais domina: a extração de petróleo em águas profundas e ultraprofundas. A distribuição do orçamento para os próximos anos deixa esse objetivo claro. A Petrobras planeja investir 84 bilhões de dólares até 2023. O maior montante, de 78 bilhões, será destinado às atividades de refino, transporte e comercialização de petróleo. Mais 5,3 bilhões irão para os negócios de gás e petroquímica. O movimento faz sentido econômico. O retorno do petróleo de águas profundas é de 15%, enquanto a atividade de refino rende 6%. A meta é reduzir a dívida, hoje de 2,5 vezes a geração de caixa — o correspondente a quase 84 bilhões de dólares —, para 1,5 vez no ano que vem.
Os investidores têm aprovado a reorganização: em três anos e meio, o valor de mercado da companhia quase quintuplicou, para 360 bilhões de reais, levando-a de volta ao posto de mais valiosa do Brasil. Poderá chegar a 414 bilhões de reais no final deste ano, segundo cálculos do banco Itaú Unibanco. O risco, para a estatal e para o país, é que a euforia do petróleo adie investimentos em novas fontes de energia. Em projetos de energia eólica, solar e biocombustíveis, a Petrobras vai investir apenas 400 milhões de dólares até 2023, com o objetivo de tornar o biodiesel e o bioquerosene de aviação comercialmente viáveis.
Com a melhora de sua situação financeira, a empresa “espera estar preparada para atuar no longo prazo em negócios de energias renováveis”, segundo divulgou em comunicado. Embora concordem que o petróleo deva prevalecer por algumas décadas, suas concorrentes internacionais correm para diversificar o portfólio de produtos e incluir alternativas de combustíveis renováveis. A britânica BP, por exemplo, anunciou em julho a união de suas unidades de bioenergia no Brasil com as da trading Bunge para produzir etanol de cana-de-açúcar.
Apesar de reconhecido como fonte de energia limpa e elogiado por sucessivos governos desde a década de 70, o álcool de cana é coadjuvante no Brasil: responde por cerca de 20% do consumo de combustíveis. “O que o etanol precisa para crescer é de condições justas de concorrência com a gasolina”, diz Mirian Bacchi, professora na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, da Universidade de São Paulo. Uma política de controle de preços da gasolina e do diesel no governo de Dilma Rousseff, não custa lembrar, quebrou a indústria de etanol no Brasil — e quase levou a Petrobras à lona. Se o passado serve de lição, o país já sabe o que evitar para fazer dos novos leilões uma bênção, e não uma maldição.
A mancha de óleo que atingiu centenas de praias é um lembrete de que o petróleo polui. O Brasil está preparado para emergências? | Juliana Estigarríbia
A imensa mancha de óleo que nas últimas semanas se estendeu por 2.000 quilômetros no litoral nordestino acende um sinal de alerta para as ambições da indústria petrolífera no Brasil. Diante da perspectiva de avanço da produção nos próximos anos, com a atuação cada vez maior de novas petroleiras e de empresas terceirizadas nos campos do pré-sal, cresce a preocupação com a fiscalização da atividade. “Episódios como esse reforçam a necessidade de o governo revisitar a regulação do setor, principalmente para garantir a segurança das operações”, afirma Jan-Jaap Verschoor, analista sediado em Londres da consultoria Oil Analytics.
Os primeiros sinais da mancha foram vistos no dia 30 de agosto, conforme relatório do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Na falta de uma autarquia com capa-cidade técnica, a própria Petrobras foi acionada para coletar amostras do óleo e identificar sua origem. Uma das hipóteses levantadas para o desastre é a de despejo ilegal por navio petroleiro em águas internacionais, algo que dificulta a contenção. Até o término desta edição, em 22 de outubro, não havia relatório oficial sobre a origem do óleo. E o volume de resíduos recolhidos continuava crescendo, ultrapassando 900 toneladas.
Para acelerar os trabalhos de contenção de danos, o Ministério Público Federal entrou com uma ação contra a União, no dia 19 de outubro, alegando que o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas não teria sido acionado, como prevê uma lei de 2013. O Ministério Público argumentou que a União estava sendo omissa ao adiar medidas protetivas e não atuar de forma articulada na resposta ao desastre. No dia seguinte, porém, uma decisão da Justiça Federal de Sergipe reconheceu que a União acionou o plano desde os primeiros sinais da mancha. A Marinha só convocou uma coletiva de imprensa para falar exclusivamente da mancha de óleo e dar detalhes sobre o caso em 20 de outubro.
Enquanto as divergências se acentuam, centenas de voluntários misturam-se a agentes públicos para tentar limpar o óleo espesso que se espalhou pelas praias de nove estados do Nordeste. A falta de coordenação entre os entes da federação para um combate efetivo pode ter agravado a situação, ainda que o acidente seja classificado como “sem precedentes” por especialistas ouvidos por EXAME. “A ação do governo poderia ter sido mais rápida, faltou colocar em prática um plano de contenção de danos mais efetivo desde o momento em que a mancha começou a aparecer”, diz Vanderlei Oliveira, diretor da RTA Ambiental, consultoria que presta esse tipo de serviço para a indústria extrativa. “O país precisa estar pronto para executar planos de emergência rapidamente, ainda mais em um horizonte de avanço da produção de petróleo.”
A indústria do petróleo é cada vez mais segura, mas, tal qual a indústria aeronáutica, costuma ter acidentes de grandes proporções. O maior deles ocorreu em 2010, envolvendo a britânica BP, com o vazamento de 4,9 milhões de barris na região do Golfo do México, nos Estados Unidos. Duas décadas antes, em 1989, o navio Exxon Valdez, da americana ExxonMobil, colidiu com um bloco de gelo, resultando em um vazamento de 260.000 barris de petróleo no mar da região do Alasca. O Brasil acumula dois graves acidentes. Em 2001, a plataforma P-36, da Petrobras, explodiu com 1 500 barris a bordo, causando 11 mortos. Em novembro de 2011, a americana Chevron teve um vazamento de 3 700 barris de óleo na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro.
Para Juarez Fontana, sócio da consultoria especializada em óleo e gás Argusplat, com o aumento da produção local a tendência é que o fardo sobre a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) aumente nos próximos anos. “O foco do governo precisa ser o fortalecimento da ANP, com mais recursos e funcionários, para que ela possa cumprir sua missão. O papel ‘fantasma’ das agências reguladoras no Brasil pode ser um grande problema para a indústria petrolífera no futuro”, diz Fontana. Nos Estados Unidos, um dos líderes globais na produção de petróleo, não há uma única agência que concentre todos os poderes, mas, em caso de danos, a punição é rígida. “A Justiça americana pune de forma exemplar. Até hoje, as empresas envolvidas em acidentes emblemáticos estão pagando a conta de alguma forma”, afirma Fontana. Condenada em 2016 pelo vazamento no Golfo do México, a BP recebeu uma multa de 21 bilhões de dólares por danos ambientais. No Brasil, a Chevron pagou 35 milhões de reais de multa pelo vazamento de 2011. A Petrobras até hoje trava uma disputa judicial pelo afundamento da P-36.
Para Mark Zoback, especialista da Universidade Stanford, não é possível nem desejável um abandono rápido do petróleo | Juliana Estigarríbia
A necessidade de adotar energias mais limpas, que ajudem na redução da emissão de gases, é um caminho sem volta — pelo menos para os que têm a ciência como norte. Mas um dos maiores pesquisadores do tema, Mark Zoback, presidente do departamento de geofísica da Universidade Stanford, na Califórnia, e professor do curso “Passado, presente e futuro dos combustíveis fósseis”, a transição vai demorar. “Antes disso, não é possível nem desejável”, diz ele.
A economia global está próxima de cortar a dependência dos combustíveis fósseis?
Não estamos muito próximos, não. O sistema de transportes é quase completamente dependente dos combustíveis fósseis. Os veículos elétricos estão chegando, mas sua penetração ainda é extremamente baixa. Essa transição vai demorar, especialmente nos países em desenvolvimento, que vão demandar energia de fontes como petróleo e carvão.
Até quando o petróleo será um negócio rentável?
Precisamos reduzir os níveis de emissões de CO2 o mais rapidamente possível, mas ninguém pode afirmar, de maneira séria, que a transição total para energias renováveis vai acontecer em dez anos. Não é possível nem desejável. Haveria um custo incalculável para a sociedade, principalmente porque ainda não temos um sistema de reservas de energia viável.
Como o senhor vê o papel do Brasil na indústria global do petróleo?
O Brasil está bem posicionado, porque tem muito petróleo disponível. O grande desafio será desenvolver toda essa indústria de forma responsável, levando em consideração que, em 20 ou 30 anos, o consumo de combustíveis fósseis vai começar a cair, e o país não poderá ser tão dependente dos hidrocarbonetos.