Joe Biden: perto de completar 78 anos, ele tenta pela terceira vez chegar à Presidência (Alex Wong/Getty Images)
Carla Aranha
Publicado em 30 de julho de 2020 às 05h00.
Última atualização em 5 de agosto de 2020 às 19h19.
A menos de 100 dias da eleição presidencial nos Estados Unidos, o cenário nebuloso criado pela pandemia de covid-19 e pela recessão permite que os americanos tenham uma única certeza: vão escolher o inquilino da Casa Branca mais velho da história do país. A disputa está entre o republicano Donald Trump, de 74 anos, que busca seu segundo mandato, e o democrata Joe Biden, de 77 anos (ele fará 78 em novembro). No momento, as pesquisas indicam uma vantagem para o mais veterano dos candidatos. É a terceira vez que Biden tenta chegar à Presidência. Na primeira, na eleição de 1988, desistiu da candidatura depois de admitir que havia plagiado um discurso de campanha. Na segunda vez, em 2008, faltou fôlego para chegar até o final, mas, como consolação, foi escolhido para ser o vice do presidente Barack Obama. Agora, em sua terceira tentativa, Biden tem grande chance de finalmente ocupar a Casa Branca e promover mudanças no país — com reflexos para o mundo e, claro, para o Brasil.
A possibilidade de vitória de Biden tem preocupado grandes investidores, que em geral veem Trump como mais amigável aos negócios. Em seu governo, o republicano cortou aproximadamente 2 trilhões de dólares em impostos e viu o índice S&P 500, o principal indicador do mercado acionário americano, subir mais de 45%. Caso seja reconduzido ao cargo, Trump promete levar adiante o plano de reduzir a carga tributária para estimular a recuperação da economia. Por sua vez, Biden, que mal tem saído de sua casa no estado de Delaware, assistindo de camarote aos problemas enfrentados pelo adversário por causa do avanço da covid-19, tem uma visão diferente da economia. O candidato democrata promete elevar a carga tributária das empresas, de 21% para 28%, e taxar as grandes fortunas. O aumento dos impostos seria necessário para compensar os maiores gastos em áreas como saúde, educação e habitação. Biden também quer lançar um pacote de 700 bilhões de dólares para impulsionar a indústria americana e os investimentos em pesquisa e inovação. “O governo deveria usar o dinheiro pago pelos contribuintes para criar empregos nos Estados Unidos e incentivar a demanda por produtos americanos”, afirmou Biden.
As estratégias para impulsionar a economia podem ser diferentes, mas a retórica dos dois candidatos não muda muito. “Parece que está difícil escapar do discurso nacionalista que vem se acentuando no mundo”, diz o economista americano Jon Lieber, diretor do Eurasia Group, principal consultoria de risco político do mundo. “Aumentar os impostos para reduzir as desigualdades está de acordo com a política econômica do Partido Democrata, mas anunciar um pacote econômico tão arrojado é algo que se assemelha um pouco à retórica de Trump.”
Há outras semelhanças entre os candidatos. Ambos são brancos, homens e bem-sucedidos em um país onde as desigualdades — principalmente as raciais — têm saltado aos olhos. Biden, com décadas de serviços prestados ao Congresso e à Casa Branca, vem de uma típica família de classe média dos anos 1950 e 1960, quando isso significava não ter muitas dificuldades para arcar com os custos de uma boa universidade e ocupar postos importantes. Bastava estudar, perseverar e seguir em frente. Biden tornou-se senador por Delaware em 1972, apenas três anos depois de se formar em direito pela Universidade de Syracuse, no estado de Nova York. O Partido Democrata sempre viu nele, um dos senadores mais jovens do país, um político com potencial de chegar à Casa Branca. “A questão agora é se ele tem fôlego para vencer uma corrida presidencial em um dos momentos mais críticos da histórica americana”, diz Nancy Vanden Houten, economista-chefe da consultoria Oxford Economics. “Ninguém sabe quanto tempo a pandemia vai durar, o que pode diminuir a chance de Trump, ou exatamente quando a economia vai dar sinais reais de melhora.”
Os Estados Unidos ocupam a liderança mundial no ranking dos países com mais casos de covid-19, com mais de 4 milhões de pessoas infectadas. O Fundo Monetário Internacional prevê uma retração da economia americana de 5,9% neste ano. A boa notícia é que, em 2021, deve haver uma recuperação, com um crescimento de mais de 4% do PIB. Em junho, o mercado de trabalho surpreendeu positivamente, com a criação de 4,8 milhões de vagas de trabalho, 11% acima do esperado. “Mas ainda é cedo para saber se esses são sinais reais de retomada econômica”, diz Houten. “A verdade é que estamos na mais profunda crise econômica das últimas décadas, e as empresas americanas ainda precisam enfrentar uma concorrência ferrenha com a China.”
No campo geopolítico, as coisas também vêm esquentando, com uma escalada de tensões entre a China e os Estados Unidos. Agora, não é só a guerra comercial, iniciada em 2018, que preocupa. “No nível diplomático, o fechamento de consulados, de um lado e de outro, é algo que não se tinha visto até então”, diz John Sitidiles, especialista em relações internacionais da Universidade Colúmbia e consultor do governo americano para assuntos relacionados à geopolítica. “Mas provavelmente não haverá grandes mudanças na relação entre a China e os Estados Unidos com uma eventual vitória de Biden, já que se trata de uma questão estrutural, que tem muito mais a ver com uma luta pela primazia mundial do que com questões partidárias americanas.”
Há muito em jogo entre os dois países. Enquanto a economia americana deve descer ladeira abaixo neste ano, como a maioria dos países, o PIB da China, primeiro país a sair do lockdown durante a pandemia, deve crescer 2,2%. As previsões são baseadas nos resultados preliminares do primeiro semestre. Os Estados Unidos ainda estão longe disso. “O déficit na balança comercial americana em relação à China também não dá margens para uma política muito diferente da atual”, diz Houten. Em 2019, o déficit americano chegou a quase 346 bilhões de dólares. “Nesse cenário, nenhum candidato a presidente dos Estados Unidos pode se dar ao luxo de querer apertar as mãos do presidente chinês, Xi Jinping, e dizer que está tudo certo.” A diferença pode estar mais nas palavras do que na ação, dependendo de quem vencer as eleições. “Biden pode usar um tom diplomático mais ameno, por exemplo.” E, em vez de adotar retaliações unilaterais, como tem feito Trump, pode tentar formar uma coalizão com aliados para pressionar a China.
É na arena internacional que deve aparecer uma das principais diferenças entre Biden e Trump. Como um legítimo representante do Partido Democrata, mais propenso a defender o multilateralismo, Biden pode renovar os votos de confiança em instituições como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), das quais Trump anunciou que os Estados Unidos devem se retirar. Em 2019, Trump bloqueou as nomeações dos dirigentes do órgão de apelação da OMC, que rege as disputas comerciais entre os países. O argumento do presidente americano é que a China não deve ser mais tratada como um país em desenvolvimento, capaz de usufruir de condições comerciais especiais, mas como uma nação desenvolvida. “Nessa questão, Biden pode adotar um tom mais conciliatório na OMC”, diz Lieber.
Mas é na esfera ambiental que Biden talvez mais se diferencie de seu oponente. No dia 14 de julho, o candidato democrata anunciou um plano ambicioso de combate às mudanças climáticas, com investimentos de 2 trilhões de dólares em quatro anos. Uma das metas é estimular fontes de energia limpa, como solar e eólica, para zerar as emissões de carbono até 2035. Biden prometeu também recolocar os Estados Unidos no Acordo Climático de Paris, que traça metas globais de redução de emissões para conter o aquecimento global. Trump anunciou a saída dos Estados Unidos do acordo em 2017, alegando que a substituição dos combustíveis fósseis por energias limpas poderia reduzir a competitividade do país.
Os temas ambientais devem ser justamente os principais motivos de possíveis atritos entre um eventual governo Biden e o governo de Jair Bolsonaro. Em entrevista à revista Americas Quarterly no ano passado, Biden comentou sobre o desmatamento na Amazônia: “Bolsonaro deve saber que, se o Brasil não for um guardião responsável da Floresta Amazônica, meu governo reunirá o mundo para garantir a proteção do meio ambiente”. Desde que tomou posse, o presidente brasileiro buscou uma aproximação com Trump, a quem considera um ídolo. É um alinhamento pessoal que até agora trouxe poucos resultados concretos para o Brasil, mas que pode ter consequências se Biden chegar à Casa Branca. “No caso de vitória de Biden, é inevitável um distanciamento da política externa americana em relação ao Brasil e é possível até que haja conflitos”, diz Rubens Ricupero, ex-embaixador em Washington e que também foi titular dos ministérios do Meio Ambiente e da Fazenda. “A política externa de Bolsonaro tem um posicionamento no mundo que decorre de uma visão ideológica que é antípoda do que pensam Biden e os democratas em relação a temas como meio ambiente, povos indígenas, direitos humanos e diversidade de gênero.”
Se Trump não for reeleito, Bolsonaro terá de conviver pelo menos dois anos ainda com Biden na Presidência. Vale a pena iniciar uma aproximação? Para Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas em São Paulo, o momento de estabelecer “discretamente” um canal de comunicação com Biden é agora. “Depois da eleição, ficará mais difícil abrir uma porta. O Brasil vai para o fim da fila”, afirma, lembrando que o Brasil nunca foi um parceiro estratégico para os americanos. No ano passado, o Brasil foi apenas o 14o maior parceiro comercial dos Estados Unidos, atrás de países como Taiwan e Vietnã. Ao se aproximar de Trump, Bolsonaro falava em transformar os Estados Unidos no principal parceiro comercial do Brasil, mas essa era “uma expectativa totalmente irreal”, diz Stuenkel. Uma das razões, segundo ele, é que as economias americana e brasileira não são complementares — ao contrário, competem em alguns setores, como no agronegócio. Para Stuenkel, a postura crítica que países europeus, como a França e a Alemanha, adotam em relação ao Brasil é um prenúncio do que poderá acontecer com a vitória democrata em novembro. “O Brasil já passa por um isolamento diplomático no Ocidente, e isso vai piorar com uma eventual eleição de Biden.”
Em uma live há duas semanas, Bolsonaro reafirmou sua torcida por Trump, mas disse que, caso seu amigo seja derrotado nas urnas, tentará uma aproximação com os democratas. “Se eles não quiserem, paciência, né?”, minimizou. Trump ainda não jogou a toalha, apesar de as últimas pesquisas indicarem uma vantagem de pelo menos 8 pontos percentuais para Biden, que lidera nos estados que contam mais votos no Colégio Eleitoral. Os democratas têm chance também de vencer a eleição no Senado, dando a Biden o controle do Congresso (já têm maioria na Câmara). Uma das esperanças de Trump é que até a eleição, em 3 de novembro, a economia do país dê sinais firmes de retomada, com a redução dos atuais níveis de desemprego. Outra aposta do presidente é que a FDA, agência federal que supervisiona medicamentos e alimentos, aprove a produção de uma das vacinas contra a covid-19 que já se encontram em fase de testes clínicos. Até a eleição, muita água vai rolar sob as pontes nas proximidades da Casa Branca.