Revista Exame

A nova cara do esporte pós-quarentena

Em meio à pandemia de covid-19, várias modalidades esportivas tentam retomar os campeonatos. Mas há mais pontos de interrogação do que certezas

O cenário estava carregado de simbolismo: Anthony Fauci, infectologista-chefe do governo americano e um dos cientistas-celebridade da pandemia, foi convidado para lançar o arremesso inaugural da temporada do beisebol americano. Fauci é fã do esporte desde menino e torce para o Washington Nationals, o atual campeão e em cujo estádio foi realizada a primeira partida do ano. Vestindo camisa, boné e máscara com o logotipo do time, o médico se posicionou, apontou e... lançou a bola longe do recebedor. No futebol, seria mais ou menos o equivalente a cobrar um pênalti e acertar a bandeirinha do escanteio.

Fauci se explicou afirmando que seu braço estava dolorido depois de passar o dia anterior treinando. Na internet, as piadas diziam que o doutor estava apenas cumprindo à risca suas recomendações de distanciamento social. Mas acertar o alvo no beisebol é muito mais difícil do que parece, ainda mais para um médico de 79 anos. O que ninguém suspeitava era que aquela bola fora pode ter sido um mau presságio. Três dias depois da volta do esporte, foi identificado um surto de covid-19 entre os jogadores do Miami Marlins que acometeu 18 atletas e dois membros da comissão técnica. Na sequência, outro time, o St. Louis Cardinals, anunciou 13 casos positivos. Mais de 35 partidas já foram adiadas por causa do coronavírus. Em menos de uma semana, a volta do beisebol, o passatempo nacional americano, sinônimo de verão, hot dogs e cerveja gelada, estava cercada de incertezas.

O infectologista Anthony Fauci (à esq.) em jogo inaugural do beisebol americano: mais de 35 partidas adiadas pela pandemia | Alex Trautwig/MLB Photos/Getty Images (Wikimedia Commons)

Pelo que se viu na estreia do Campeonato Brasileiro de futebol, a situação não é muito diferente no Brasil. O Goiás teve dez jogadores contaminados e não entrou em campo contra o São Paulo. Na Série C, o Imperatriz, do Maranhão, também não entrou em campo contra o Treze depois de identificar 12 atletas infectados pelo coronavírus — e de viajar de ônibus e de avião até a Paraíba. O protocolo de segurança da CBF determina que os exames sejam feitos até 72 horas antes das partidas e os jogadores sejam liberados com 24 horas de antecedência. Mas logo na primeira rodada o esquema não funcionou — em ambos os casos os resultados só foram divulgados horas antes do apito inicial. “Já pensou se nós jogamos contra os caras com 12 positivos? A merda que ia ser?”, escreveu no Twitter Breno Calixto, zagueiro do Treze.

Mesmo nos campeonatos em que não houve surtos dessa magnitude, a sensação é de estranheza, no mínimo. As arquibancadas estão vazias. Muitos times estão jogando longe de casa. E ninguém sabe quando as coisas voltarão ao normal. A fase final da Champions League será disputada em Lisboa, território neutro, com portões fechados e sem as tradicionais partidas de ida e volta. Nos torneios nacionais europeus, que começam logo na sequência, também não há nenhuma indicação de que os torcedores poderão voltar aos estádios tão cedo — e, com eles, parte importante das receitas. Quando considerável parcela da população estava confinada em casa, tentando achatar a curva, a bola rolando (ou quicando, ou sendo rebatida) fez falta como nunca. Agora o esporte ensaia uma volta, mas não há nenhuma garantia de que as estratégias vão funcionar. “Um dia de cada vez”, disse à EXAME Kim Ng, vice-presidente sênior de operações da Major League Baseball, a liga americana de beisebol. “Ainda é cedo demais para falar do futuro.”

Cada esporte adotou um modelo diferente. O mais radical é a criação de uma bolha para isolar jogadores, comissões técnicas e árbitros. Foi o que fez a NBA, a liga de basquete americana. A temporada regular estava perto do fim quando o Utah Jazz anunciou que uma de suas estrelas, o francês Rudy Gobert, tinha contraído o coronavírus. A suspensão do campeonato foi anunciada naquela noite de 11 de março, quase ao mesmo tempo que apitou o alerta nos celulares noticiando o teste positivo do ator Tom Hanks e a proibição da entrada de europeus nos Estados Unidos. Para muitos americanos, a suspensão do basquete foi um dos eventos que marcaram o início da pandemia.

A NBA voltou em 1o de agosto, e Gobert estava na quadra já na segunda partida do dia. Mas as circunstâncias não poderiam ser mais diferentes. Todos os 22 times estão isolados em Orlando, na Flórida, desde o começo de julho (oito deles ficaram de fora porque já não tinham chance de classificação para os playoffs). As regras de entrada e permanência na bolha — que fica no complexo do canal ESPN, dentro da Walt Disney World — são severas e estão descritas num documento de 113 páginas preparado pela liga. Todos os que entraram na zona de isolamento foram submetidos a testes e só puderam sair do quarto depois de confirmados dois resultados negativos. Quem circula pelas áreas públicas deve usar um sensor que apita caso fique a menos de 1,80 metro de outro por mais de 5 segundos. O manual entra em detalhes minuciosos (para não dizer impossíveis de cumprir): estão proibidas as duplas no pingue-pongue, e baralhos devem ser descartados depois do uso.

Essa obsessão com os mínimos detalhes está funcionando, ao que tudo indica. Em 5 de agosto, a NBA anunciou que, pela terceira semana consecutiva, não houve nenhum resultado positivo em 343 testes realizados nos jogadores. Em uma entrevista por e-mail à EXAME dias antes do recomeço do campeonato, o brasileiro Raulzinho Neto, armador do Philadelphia 76ers, disse que, apesar de algumas medidas parecerem “esquisitas”, a sensação de segurança é grande na bolha. Raulzinho passou mais de três meses treinando sozinho. “Era o que eu podia fazer. Num esporte que exige contato físico e precisão, não foi o ideal, mas me ajudou.” Seu time já está classificado para a primeira rodada dos playoffs. Se o 76ers passar para a segunda rodada, Raulzinho e seus colegas poderão finalmente receber a visita de amigos e familiares.

Treino para a Volta da França virtual: aquecimento | Anne-Christine Poujoulat/AFP (Antonio Milena/Veja)

O fato de a bolha estar na Flórida, um dos maiores epicentros da pandemia nos Estados Unidos, com mais de meio milhão de casos confirmados, não passou despercebido. Enquanto os americanos têm de esperar até dez dias para receber o resultado de seus testes de covid-19, os jogadores — milionários em sua maioria — e outros confinados têm o luxo da testagem regular. As ligas afirmam que não estão furando a fila dos laboratórios, mas, para Zach Binney, epidemiologista da Emory University, isso não basta. “É uma questão ética. Pessoas que fazem trabalhos essenciais podem estar circulando há dias sem saber que seu teste deu positivo”, afirmou ele à rádio NPR. “Todo atraso, mesmo de alguns dias, pode ter impacto.”

Do outro lado estão os interesses econômicos de equipes, ligas e federações — e também o anseio dos torcedores por uma distração nestes tempos sombrios. “É importante entregar o produto para a TV, para os patrocinadores e para os fãs”, diz Alexandre Leitão, presidente do Orlando City, equipe da MLS, a liga americana de futebol profissional. O campeonato americano estava somente na terceira rodada quando foi suspenso. No início de julho, a liga voltou com um torneio batizado MLS is Back (“a MLS voltou”), com um modelo semelhante ao da NBA e uma bolha no mesmo complexo. O resultado foi positivo, segundo Leitão. A audiência de TV foi boa, e o fato de quase não haver concorrência ajudou.

Jogadores do São Paulo: estreia adiada porque seu adversário, o Goiás, tinha vários jogadores com covid-19 | Carlos Costa/Futura Press (Divulgação)

O desafio será a retomada do campeonato regular. A liga anunciou na semana passada os primeiros detalhes do plano. Os times jogarão em seus estádios e viajarão para as partidas fora de casa de ônibus ou em voos fretados. Inicialmente, não haverá público nas arquibancadas — e esse é um dos maiores pontos de interrogação no que diz respeito à economia bilionária do esporte profissional. A Associação Europeia de Clubes de futebol estimou em 3,6 bilhões de euros as perdas causadas pela pandemia. “O impacto financeiro da covid-19 já é um choque sísmico, mesmo com a volta da maioria das competições”, disse o presidente da entidade, Charlie Marshall. “E esse impacto não acaba com a volta dos jogos. Ele vai se estender até a próxima temporada, e temos de tomar medidas para que a indústria do futebol seja mais sustentável no longo prazo.” Os efeitos da pandemia devem atingir também o futebol feminino, o lado mais frágil do esporte, por contar com menos recursos e patrocínios.

INAUGURAÇÃO SILENCIOSA
Leitão estima que 25% da receita do Orlando City dependa do dia dos jogos: ingressos, estacionamento, venda de merchandising e consumo de comidas e bebidas. No futebol americano, de longe o esporte mais popular dos Estados Unidos, estima-se que essa porcentagem chegue a quase 40% — ou 5,5 bilhões de dólares, segundo dados de dois anos atrás. O impacto varia de acordo com a equipe. O Dallas Cowboys, um dos times mais populares da NFL e dono de um estádio que comporta 105.000 pessoas, faturou 612 milhões de dólares em 2018. No ano passado, uma cerveja no AT&T Stadium custava 9 dólares; uma água, 5 dólares; e um hot dog, 5,50. E há muitas outras opções de alimentação, como o Smash, um hambúrguer monstruoso coberto de carne fatiada, queijo e cebola caramelizada (22 dólares mais impostos).

A temporada do futebol americano começa em setembro, e a NFL deixou a cargo de cada equipe a decisão de permitir a entrada de torcedores — desde que haja autorização­ do governo local. O impacto será particularmente sentido pelo Los Angeles Rams, time que vai inaugurar a instalação esportiva mais cara de todos os tempos. Erguido por um custo fabuloso de 5 bilhões de dólares, o SoFi Stadium tem grande a chance de receber sua primeira partida sem nenhuma testemunha. A posição oficial do clube é que, se houver público, ele será “limitado”. O Green Bay Packers espera que não mais do que 12.000 pessoas assistam às partidas — ou seja, 68.000 lugares estarão vazios.

Jogadoras do Wolfsburg comemoram título da Liga Alemã: o espetáculo continua | Rolf Vennenbernd/picture alliance/Getty Images (Wikimedia Commons)

Uma das alternativas é cobrir as cadeiras vazias com faixas publicitárias, mas elas não comem nem bebem. As repercussões financeiras serão sentidas por anos. A venda de ingressos para toda a temporada é muito comum, especialmente porque cada time joga somente oito vezes em casa durante a temporada. O Baltimore Ravens já tinha vendido mais de 60.000 pacotes, mas o público será limitado a 14.000 torcedores por partida. Uma das ideias levantadas pela NFL é reduzir o teto salarial das equipes. No futebol europeu, a perda de receitas vai aumentar o peso do salário dos jogadores no orçamento das equipes de 59,6%, em 2019, para 70,1%, na próxima temporada.

A situação entre os times brasileiros pode ser ainda mais grave, segundo Amir Somoggi, sócio diretor da Sports Value, consultoria de marketing esportivo. Somoggi espera uma “redução drástica” do faturamento das equipes. Somente em venda de ingressos, o buraco deve ser de 1 bilhão de reais. Somadas as perdas com direitos de TV, patrocínios e venda de produtos, os 20 maiores times do país podem deixar de faturar até 2,5 bilhões de reais, o que representa uma queda de 37% em relação ao obtido no ano passado. “Existe o risco de uma quebradeira geral”, afirma Somoggi.

A pandemia ofereceu uma oportunidade única de reajustar o calendário, começando com a extinção dos campeonatos estaduais, deficitários e despropositados, na opinião de Somoggi. “Também seria uma excelente oportunidade para os clubes desempenharem um papel social mais relevante. Mas o que vimos foi somente pressa para voltar ao campo. Enquanto isso, o Atlético Nacional, da Colômbia, emprestou seu ônibus aos profissionais de saúde.”

E é impossível calcular os riscos que os torcedores estão dispostos a correr numa arquibancada lotada. Um jogo entre Atalanta e Valencia no final de fevereiro, em Bergamo, é apontado como um dos eventos que impulsionaram a pandemia no norte da Itália. Ninguém usava máscaras nem falava em distanciamento social na época, é claro, mas hoje já se sabe que ambientes lotados com gritaria são particularmente propícios para a disseminação do vírus. A Volta da França, maior evento esportivo anual em público total, acompanhada por milhões de pessoas amontoadas à beira das ruas e estradas do país ao longo de três semanas, deverá ser um teste importante. Depois de realizar um evento virtual na plataforma de treinamento e competições Zwift — os atletas disputaram corridas vir­tuais pedalando da casa deles, com uma elaborada transmissão ao vivo pela internet —, a prova tem a largada prevista para o final de agosto. A dúvida é se veremos as clássicas cenas de pessoas correndo e gritando ao lado dos ciclistas que sobem as montanhas dos Alpes e dos Pireneus. “Espero que os espectadores não se aglomerem”, disse David Robillard, vice-prefeito do vilarejo de Mandagout, por onde a prova passa neste ano. “A responsabilidade é de cada um.”

Os riscos de saúde no médio e no longo prazo para quem contraiu covid-19 também não são conhecidos. Os dados iniciais indicam que sequelas graves são raras, mas existem. O arremessador Eduardo Rodriguez, uma das estrelas do Boston Red Sox, anunciou no final de julho que não vai jogar a temporada de beisebol por causa de um diagnóstico de miocardite, uma inflamação do coração. Rodriguez, de 27 anos, teve covid-19 em junho. “É a parte mais importante do corpo. Então, quando você ouve uma coisa dessas, fica um pouco assustado”, disse ele. Como diz o célebre bordão do narrador Galvão Bueno, haja coração para acompanhar a volta dos esportes.

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