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"Papel das empresas no combate à fome é fundamental", diz diretora do Pacto contra Fome

Em entrevista, Maria Siqueira fala dos alarmantes níveis de insegurança alimentar no país e da importância do setor privado para a mudança dessa realidade

Pacto contra Fome: Maria Siqueira é Diretora de Políticas Públicas e Projetos. (Pacto contra Fome/Divulgação)

Pacto contra Fome: Maria Siqueira é Diretora de Políticas Públicas e Projetos. (Pacto contra Fome/Divulgação)

EXAME Solutions
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Publicado em 11 de abril de 2024 às 08h00.

Última atualização em 12 de abril de 2024 às 15h41.

Seis em cada dez pessoas no Brasil (125 milhões) vivem em algum nível de insegurança alimentar, 20 pontos percentuais a mais que há apenas duas décadas, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN).

No grau mais severo de insegurança, o da fome, o número de brasileiros mais do que dobrou no mesmo período e hoje são 33,1 milhões de indivíduos sem comida suficiente em casa. 

Para Maria Siqueira, Diretora de Políticas Públicas e Projetos do Instituto Pacto Contra a Fome, reverter esse cenário é complexo e desafiador, mas possível se houver uma união de forças. Prestes a completar um ano de atividades, o PCF é um movimento suprapartidário que atua exatamente articulando governo, setor privado e sociedade civil para realizar essa mudança, de forma estrutural e permanente. 

Nesta entrevista, Maria analisa por que regredimos tanto em 20 anos e qual é o papel das empresas na virada desta página, atuando no combate à fome, à insegurança alimentar e ao desperdício de alimentos. 

Como o Brasil se movimentou no combate à fome nas duas últimas décadas?

Nesse período, o país passou por momentos de comemoração e de pesar nessa luta. Na primeira década dos anos 2000, os indicadores de crescimento econômico, empregabilidade e redução da pobreza e extrema pobreza nos mostravam um cenário macro positivo. Isso se deu pela estabilidade da economia, pelo investimento do governo em programas de inclusão socioeconômica e pelo compromisso de demais setores na melhoria das condições sociais. 

Ao mesmo tempo, tivemos a implementação e o fortalecimento de políticas públicas intersetoriais focadas na garantia da segurança alimentar das populações mais vulneráveis. Assim, entre 2004 e 2013, a fome caiu pela metade, saímos do Mapa da Fome da ONU, mas ainda éramos cerca de 7 milhões de pessoas. No entanto, nos anos seguintes a fome voltou a crescer e, em 2018, alcançou 10,3 milhões de pessoas no Brasil. 

O que aconteceu ao longo desses 20 anos para chegarmos a patamares tão preocupantes de insegurança alimentar?

O aumento dos indicadores de insegurança alimentar entre 2014 e 2018 foi causado por uma série de fatores, entre eles cortes nos orçamentos de políticas públicas que vinham demonstrando resultados efetivos e também o acirramento da crise econômica. 

Neste cenário de avanço dos indicadores de fome chegamos a 2020, quando a pandemia causou uma exacerbação desses números. Aqui, falamos de uma crise de fome, que só agravou aquilo que já voltava a ser cotidiano para o Brasil. Segundo dados da rede PENSSAN de 2022, último dado disponível, são 33,1 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave, o que representa mais de 15% da população brasileira, e um total de 125 milhões em insegurança alimentar. 

Os 3 graus de insegurança alimentar

Leve – Incerteza se terá comida futuramente. A pessoa abre mão da qualidade em prol da quantidade 

Moderada – A pessoa muda seus hábitos alimentares e come menos

Severa (fome) – Sem comida ou dinheiro para comprá-la, a pessoa faz uma refeição diária ou fica um dia (ou mais) sem se alimentar

Fonte: Rede PENSSAN

Por que mudar essa realidade é tão desafiador? 

Atuar no combate à fome é um desafio porque suas causas são bastante complexas e requerem uma atuação, de médio e longo prazo, de diferentes frentes do governo e da sociedade civil. Nós, do Pacto Contra a Fome, acreditamos que apenas com uma atuação conjunta, inteligente e articulada, e que envolva os diversos atores da sociedade, como iniciativa privada, governos e sociedade civil, seremos capazes de criar as condições necessárias e perenes para erradicar a fome no Brasil. 

Quais são os maiores desafios hoje para o efetivo enfrentamento da insegurança alimentar, especialmente no nível mais severo?

Primeiro, precisamos de políticas públicas estruturantes e de caráter permanente focadas em combater as causas raízes da fome: a pobreza, a desigualdade social e a dificuldade de acesso ao alimento. Por exemplo, garantir o acesso à renda e ao trabalho digno são essenciais em um país que tem aproximadamente quatro em cada dez brasileiros vivendo na pobreza ou na extrema pobreza, segundo dados do IBGE.

Também o preço dos alimentos impacta diretamente as questões de segurança alimentar. Em uma lógica de mercado, a renda é fundamental para o acesso ao alimento, mas ela sozinha não é suficiente. É necessário pensar em ações que permitam que as pessoas acessem essa comida, como por exemplo, aumentando a disponibilidade de aparelhos de segurança alimentar nos espaços públicos e promovendo mudanças em como produzimos, distribuímos e garantimos que a comida chegue à mesa de todos. 

Qual é o papel do setor privado nessa missão? 

O setor privado detém um grande poder de pressão sobre o setor público e pode usar essa capacidade em favor de políticas públicas que atuem nas causas da fome e da insegurança alimentar. 

Especificamente, que funções dentro dessa força-tarefa de erradicação da fome cabem às empresas?

Há muitas maneiras de contribuir e as empresas têm se dedicado a criar soluções e ações conectadas à sua política de ESG. Internamente, criando programas que promovam a saúde e a segurança alimentar dos seus funcionários, principalmente oferecendo condições de trabalho dignas e justas, e espaços de alimentação saudáveis.

Podem desenvolver também programas voltados à redução da insegurança alimentar, seja dos colaboradores e do seu entorno ou, de maneira mais ampla, nas cidades. Por fim, podem apoiar iniciativas do terceiro setor, como parceiros fundamentais e viabilizadores financeiros de toda a estratégia de superação da fome no país.

O quanto o setor privado tem avançado nesse sentido? 

Olhando para o contexto geral das iniciativas que temos hoje, há boas experiências, mas ainda estamos longe da mobilização necessária. Pelo último censo Gife (2022/2023), o investimento social privado foi de R$ 4,8 bilhões em 2022, um crescimento de 20% sobre a média dos valores aportados entre 2015 e 2019.

No entanto, os valores aplicados em ações relacionadas às causas da fome chegam próximos a 10% desse total e ainda estão distantes do ideal. Além disso, muitas das ações contempladas são para atendimentos emergenciais, como distribuição de alimentos, e não construção de medidas estruturantes e permanentes não suscetíveis a mudanças de governos. 

Há iniciativas realmente relevantes acontecendo?

Sim. Temos muitos casos de grandes doadores e empresas que investem em ações no seu entorno ou nas comunidades locais demonstrando que é possível atuar de maneira assertiva e eficaz e obter bons resultados no combate à fome e ao desperdício.

Já na cadeia de alimentos, as companhias têm papel fundamental no engajamento em medidas de redistribuição de alimentos, reduzindo o desperdício em favor do combate à fome, como é o caso das empresas que contribuem com o Todos à Mesa ou com o Mesa Brasil, do Sesc.

Além de evitar o desperdício de alimentos, elas facilitam, com essa ação, o acesso ao alimento. Mas vemos como necessário avançarmos para contribuir com a construção de métricas e indicadores para a mensuração de resultados das empresas nessas agendas. 

Quanto ao desperdício de alimentos, ponto crucial nesse contexto, como o setor privado pode fazer diferença? 

A atuação do setor privado é fundamental nessa questão. Além da força que as empresas detêm para educar e conscientizar e fazer ações contra o desperdício internamente, é possível, dependendo do setor a que se dedicam, empreender ações e soluções que ajudem a reduzir os indicadores do desperdício. 

Uma iniciativa importante para conectar essas ações é a retomada, neste ano, da Estratégia Intersetorial para a Redução de Perdas e Desperdício de Alimentos, liderada pela Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que deve liderar as ações intersetoriais e cuja participação da iniciativa privada é imprescindível para que os esforços para reduzir o desperdício de alimentos sejam coordenados e seus impactos alavancados. 

Desperdício de alimentos no Brasil

55 milhões de toneladas de alimentos vão parar no lixo todos os anos no país. Isso é 8 vezes a quantidade necessária para alimentar os 33 milhões de brasileiros que passam fome

Os consumidores são responsáveis por apenas 13% do desperdício. Os outros 87% cabem às empresas envolvidas na cadeia de alimentos, do campo ao varejo.

Fonte: Mapa da Fome e do Desperdício de Alimentos no Brasil 2022

Que mecanismos o PCF vem usando para estimular as empresas a integrar ações que contribuam para a erradicação da fome? 

Temos trabalhado fortemente na criação de conexões com o setor produtivo por meio de ações de mobilização com relação à pauta da fome e do desperdício de alimentos. Acreditamos que a informação e o entendimento mais aprofundados sobre essa temática e suas consequências é a ferramenta mais eficiente para unir os setores em torno de soluções. 

O que a iniciativa privada tem a ganhar ao apoiar um Brasil sem fome? Por que esta é uma luta que beneficia a todos?

A atuação das empresas nesse âmbito também as beneficia porque, apesar de parecer distante, a fome afeta a sociedade toda, direta e indiretamente. Existe um ciclo vicioso que começa nas causas raízes da fome, que são a desigualdade, a pobreza e a dificuldade de acesso ao alimento, e compromete toda a estrutura social do país – inclusive o setor privado. 

Precisamos criar um novo ciclo para o país, que contribua para o nosso desenvolvimento social e econômico por meio de trabalhadores bem alimentados, que se tornarão, também, consumidores da iniciativa privada. Então, o combate à fome traz às empresas a possibilidade de se conectarem com a sociedade e com seus próprios objetivos, demonstrando que seus valores e propósitos estão alinhados com a atuação social.

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