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No RS, vi de perto a força da enchente e a da solidariedade dos empreendedores gaúchos

Cenário piorou de quinta para sexta-feira, quando o sistema de retenção de enchentes não segurou a força das águas

Porto Alegre: cidade segue embaixo d'água e Guaíba só deve começar a descer na semana que vem (Carlos Macedo/Bloomberg/Getty Images)

Porto Alegre: cidade segue embaixo d'água e Guaíba só deve começar a descer na semana que vem (Carlos Macedo/Bloomberg/Getty Images)

Daniel Giussani
Daniel Giussani

Repórter de Negócios

Publicado em 6 de maio de 2024 às 16h02.

Última atualização em 15 de maio de 2024 às 11h31.

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PORTO ALEGRE — Faltavam poucos minutos para as nove da manhã na sexta-feira, dia 3, quando o gerente de uma cafeteria na Rua dos Andradas, um dos principais polos comerciais do centro de Porto Alegre, avisava aos poucos clientes que estavam na loja que precisaria fechar o local por prevenção, caso as águas do Guaíba chegassem até ali. Mal deu tempo dos consumidores pagarem suas contas, os funcionários já colocavam as cadeiras por cima das mesas, ao passo em que, na rua, um caminhão descarregava sacos de areia a serem postos nas portas dos estabelecimentos, para que eles pudessem retardar a entrada de água. 

Eu era um dos clientes desse café. Tinha chegado na capital do Rio Grande do Sul na noite anterior, quinta-feira, 2. Da janela do meu avião, pude ver a água já tomando conta dos armazéns do cais da cidade, onde há menos de dois meses eu transitava sob um sol escaldante durante a terceira edição do South Summit Brazil. Apesar da subida do Guaíba, naquela noite a cidade ainda estava protegida pelo robusto sistema de proteção a enchentes feito pelo município no século passado, depois de uma inundação de 4m76cm ter atingido boa parte do centro da cidade. Esse sistema conta com um muro de seis metros, casas de bombas que jogam a água de volta para o Guaíba e quase 50 metros de diques de proteção. 

Na manhã seguinte, porém, o cenário já era outro. O Guaíba subiu durante a madrugada e as casas de bombas começaram a falhar. Assim, a água batia na casa, mas não voltava: ficava ali, inundando as ruas. As comportas que fecham os portões do muro também abriram frestas por onde jorrava água. Em pouco tempo, a rodoviária ficou inundada, bem como a Avenida Mauá, a via mais próxima ao Guaíba, e pela qual eu tinha passado na noite anterior sem grandes transtornos.

Foi nessa manhã, quando a água começou a subir, que o gerente da cafeteria pediu para que eu e uma dezena de outros clientes saíssem para poder fechar a loja, que fica a cerca de 600 metros da Mauá, onde a inundação começou. “A água não deve chegar aqui, mas é melhor se precaver”, ele me disse.

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A água, porém, chegou ainda na noite de sexta-feira, quando a inundação da cidade passou a marca histórica de 1941. E o pior: não parava de subir. Logo, chegou aos cinco metros e, durante o sábado, bateu os 5m35cm - quase no limite do muro, que é de seis metros.

A poucos metros de onde eu estava, dezenas de comerciantes corriam para salvar o que dava no Mercado Público, uma das principais atrações da cidade. Um deles era Rafael Sartori, presidente da Associação dos Permissionários do Mercado Público (Ascomepc) e membro da terceira geração de um açougue no local.

“Ainda na quinta-feira, começamos a nos proteger e sugerir aos outros comerciantes do mercado que tirassem as coisas de maior valor”, me disse ele. “Mas em 24 horas, aquilo virou um cenário de guerra. Abrimos as portas de salas fechadas do segundo andar para que os empreendedores colocassem suas mercadorias lá. A água subiu muito”. 

Na manhã dessa segunda-feira, 6, quando conversei com Sartori, a água no mercado público ainda batia 1m60cm de altura.

“É difícil, não sabemos nem o que vamos encontrar quando essa água baixar”, afirma. “Meu balcão refrigerado custa 300.000 reais. O meu estoque de carne, coloquei no segundo andar, num congelador, mas a energia acabou. Também perdi tudo ali”.

Além do açougue, Sartori tinha recém-aberto no Mercado uma hamburgueria num investimento de 500.000 reais. Dali, ele acredita que não sobrou nada. 

“Tá todo mundo muito apreensivo, teremos a perda financeira, mas o mais doloroso é que nós conhecemos o nome, o sobrenome e a história das pessoas que estão perdendo tudo”, diz. “A maior tensão é para que as pessoas salvem suas vidas. Cerca de 40% dos funcionários do Mercado Público perderam tudo”. 

O Mercado Público não foi a única região afetada em Porto Alegre. Outras ruas conhecidas pelo comércio, como a Voluntários da Pátria, foram totalmente alagadas. Para além do prejuízo financeiro, há consequências ainda incalculáveis. No centro, moradores de andares altos estão isolados até agora, muitos sem energia nem água potável. Nos supermercados em que é possível chegar, faltam produtos, num corre-corre que pude testemunhar: quem estava nas lojas carregava fardos e fardos de água, arroz e ovos. Muitos para se proteger, outros para doar. 

Se o cartão-postal da cidade rasgou o centro de Porto Alegre, uniu também sua população numa campanha sem precedentes de voluntariado. Em menos de um dia, 15.000 pessoas se inscreveram no sistema da prefeitura para se voluntariar e atender os desabrigados, que estão agora em ginásios e escolas. A campanha de doação por um Pix atestado pelo governo do Estado já arrecadou mais de 36 milhões de reais para socorrer a população. 

Mesmo nas áreas em que a água não chegou, o sentimento é de consternação. Tanto é que, mesmo que a tragédia já dure mais de três dias, ainda vai levar outros bons dias para as fichas começarem a cair para esse mais de milhão de habitantes de uma cidade ferida no corpo, na alma e no coração.

Em Canoas, mais da metade da cidade submergiu

Canoas: Pessoas são evacuadas de casa depois de enchente em Canoas, no Rio Grande do Sul (Ramiro Sanchez/Getty Images)

Se a situação em Porto Alegre é ruim, não há palavras para descrever o que acontece em Canoas, cidade da Região Metropolitana ao lado da capital gaúcha. Sem o sistema de retenção de Porto Alegre, Canoas afundou. Cerca de 60% dos 131 quilômetros quadrados de área da cidade submergiu, o equivalente a 11.000 campos de futebol. Metade da população e cerca de 80.000 casas foram atingidas. A todo tempo, helicópteros, barcos e jet skies resgatavam mais e mais pessoas e seus animais de estimação. Mesmo da Capital, era possível ouvir (e ver) o vaivém de equipes prontas para salvar novas vítimas. 

Ali, um dos bairros mais atingidos é o Mathias Velho. Nele, há uma penca de comércios e serviços. Um deles é a Fachi Materiais de Construção, do empresário Vilson Fachi. Há 33 anos com a loja, ele viu o negócio que fez crescer servir como um ponto de socorro dos moradores alagados. A água subiu quase quatro metros e pessoas inundadas precisaram quebrar os vidros da loja para conseguir se refugiar nos andares superiores.

“A nossa loja salvou muita vida, e isso dá um respiro, porque perdemos tudo”, diz. “Não sei o que dizer para os funcionários, não sei como será daqui para frente. Não consigo explicar a nossa situação. É pior que qualquer filme de terror. A sensação é de impotência”.

Apesar do cansaço, Vilson e seu filho, Alisson, pegaram um barco e começaram, eles mesmos, a ajudar a salvar as pessoas do bairro. Num posto de combustível da família, estão recebendo desabrigados e pessoas que precisam de ajuda.

“No fim das contas, estamos conseguindo salvar muitas pessoas porque os civis de Canoas se mobilizaram e estão engajados”, diz. “Nunca vi mobilização assim”. 

Do caos, a solidariedade

Vilson e seu filho não são os únicos empresários engajados em ajudar a comunidade. Em Canoas, o vice-presidente de marketing da Pmweb, de CRM, Augusto Rocha, mobilizou-se com outros grandes empresários para arrecadar dinheiro, colchão e roupas para os desabrigados. Juntos, já levantaram mais de 1 milhão de reais.

“Quando a situação começou a ficar complexa, eu vi que era muito maior do que simplesmente uma chuva, comecei a me mobilizar”, diz. “Falei com Dener Lippert, da empresa de marketing V4 Company, e com Maurício Turquenitch, CDO da Arezzo, e começamos uma campanha para arrecadar dinheiro”.

Os três colocaram 50.000 reais e começaram a ligar para pessoas conhecidas e fazer essa vaquinha crescer. Inclusive com doações internacionais. Agora, já são mais de 1 milhão de reais recebidos. 

“O nosso foco inicialmente foi as pessoas vão precisar voltar a dormir e para voltar a dormir precisam de colchão”, diz. “Ligamos para uma fábrica de colchão e estamos coordenando a entrega de 3.000 colchões agora. Pegamos caminhões e estamos abastecendo a cidade como dá”.

A água lamacenta que atinge a Região Metropolitana vem de transbordos dos rios que deságuam no Guaíba e que destruíram centenas de cidades pelo interior do Rio Grande do Sul ao longo da última semana, com pelo menos 80 vítimas fatais. Outros milhares estão sem casa, sem rumo e sem esperança. 

No interior, porém, assim como na região metropolitana do Estado, há muitas pessoas mobilizadas para ajudar. A empresa de tecnologia Imply, que tem sede em Santa Cruz do Sul, disponibilizou recursos e estrutura desde os primeiros dias da tragédia, que assolou o estado. Foi cedido helicóptero para resgates e transporte de alimentos, medicamentos e geradores para áreas isoladas, donativos e equipes de apoio em diversas frentes para auxílio aos impactados.

"Há 14 anos, estamos localizados às margens da RS-287, e nunca havíamos visto a água chegar perto da porta da fábrica", afirma Tironi Paz Ortiz, CEO da Imply.

Assim como Ortiz, muitos outros empresários se mobilizaram para salvar o que resta -- principalmente a vida das pessoas.

Semanas de reconstrução

No sábado, 6, quando tive meu voo de volta para São Paulo remarcado várias vezes até ser cancelado, comecei a traçar outros planos para sair de Porto Alegre. Naquele momento - e até agora - só há um jeito de entrar e sair da cidade: pela RS-188, a segunda rodovia mais antiga do Estado. 

O atendimento das companhias aéreas estavam com filas de mais de duas horas, mas mesmo assim, consegui remarcar meu voo a partir de Florianópolis. Deixei a cidade no início do domingo, com o Guaíba ainda muito alto: cerca de 5m28cm. A perspectiva é que ele fique assim pelo menos durante esta semana. Quando começar a baixar, novos estragos serão vistos e começará, de fato, o processo de reconstrução, que poderá durar meses e deverá contar com apoio público e privado.

Há outros riscos pela frente. Antes de chegar ao mar, a água passará ainda por cidades da região Sul do Estado, como Pelotas e Rio Grande, onde há uma das maiores zonas portuárias do país. A defesa civil já começou um trabalho para retirar moradores de áreas de risco. 

À medida que eu avançava em direção a Santa Catarina, passava por ambulâncias carregando barcos, caminhões puxando jet skis e carros de polícias e de bombeiros de outros estados, todos dirigindo rumo a Porto Alegre.

“Nós ainda estamos contabilizando os estragos. Mas precisaremos de um plano ambicioso para, no curto prazo, restabelecer serviços de energia elétrica, abastecimento de água, reconstrução de estradas, escolas, hospitais e infraestrutura pública. Além disso, vamos precisar de apoio do governo estadual e federal, com diferimento de impostos e carências para o varejo se reorganizar”, disse à EXAME o economista-chefe da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre, Oscar Frank. 

“A oferta de crédito será essencial tanto para as famílias quanto para as empresas. Para o varejista será necessário entrar em contato com prestadores de serviços, com bancos para repactuar seus contratos”, disse.

Essa, porém, é uma discussão futura na pauta de todos os empresários do Estado. A prioridade, agora, é salvar o máximo de vidas possíveis. E conscientizar as pessoas que não se trata de qualquer enchente, mas da pior catástrofe ambiental já vista pelos gaúchos.

Diante do cenário, empresas e pessoas físicas podem ajudar o estado por meio de transferência de dinheiro via PIX, diretamente para a conta oficial do governo.

  • PIX (CNPJ): 92.958.800/0001-38
  • Conta SOS Rio Grande do Sul
  • Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul)

Atenção: quando realizar a operação, confirme que o nome da conta que aparece é "SOS Rio Grande do Sul" e que o banco é o Banrisul.

Como fazer doações no local?

Empresas, grupos de serviço e organizações que desejarem enviar doações deverão contatar previamente a Defesa Civil do Estado no telefone (51) 3120-4255 para tratativas envolvendo a logística do material.

As doações estão sendo direcionadas para centros específicos e a Defesa Civil reforça quais produtos e alimentos poderão ser doados.

Porto Alegre

Local: Central Logística, localizada na Avenida Joaquim Porto Villanova, número 101, bairro Jardim Carvalho, em Porto Alegre.

Neste local, podem ser entregues:

  • Colchões (novos ou em bom estado)
  • Roupa de cama
  • Roupa de banho
  • Cobertores
  • Água potável
  • Ração animal
  • Cestas básicas fechadas

Não estão sendo recebidos:

  • Roupas e calçados
  • Medicamentos
  • Móveis e utensílios domésticos

Vale do Rio Pardo

Outro local para entrega é o Centro Regional de Doações do Vale do Rio Pardo, na Avenida Independência, 2293 - Bloco 41 - Universitário, em Santa Cruz do Sul, com horário de funcionamento 24 horas,

Itens que estão recebendo:

  • Alimentos não perecíveis
  • Material higiene e limpeza

Vale do Taquari

Em Lajeado, os itens podem ser entregues no Centro Regional de Doações Vale do Taquari, localizado na sede do Clube União Campestre, na Rua Rosalina Schneider Baron, 14, bairro Campestre, das 8h às 18h.

Itens que estão recebendo:

  • Alimentos não perecíveis
  • Marmitas prontas
  • Água potável
  • Material de higiene e limpeza
  • Absorventes
  • Fraldas descartáveis

Santa Maria

Os itens também podem ser entregues no Centro Regional de Doações Santa Maria, localizado no Centro Desportivo Municipal Farrezão, na Rua Appel, 798, bairro Nossa Senhora de Fátima, em Santa Maria, das 10h às 16h.

Itens que estão recebendo:

  • Alimentos não-perecíveis
  • Água potável
  • Roupas de cama
  • Itens de higiene e limpeza
  • Absorventes
  • Fraldas descartáveis

Vale do Caí

Em São Sebastião do Caí, os itens podem ser entregues no Centro Regional de Doações Vale do Caí, localizado no Salão Paroquial da Igreja Matriz, na Rua Marechal Floriano esquina Henrique D'Ávila, em frente à Praça Municipal, das 8h às 18h.

Itens que estão recebendo:

  • Colchões
  • Cestas básicas
  • Itens de higiene e limpeza
  • Toalhas
  • Roupas de cama
  • Água potável

Como ser um voluntário?

A Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil do Rio Grande do Sul lançou um formulário para voluntários que desejam atuar em tarefas de organização, seleção e triagem das doações de ajuda humanitária.

Instituições, empresas e ou grupos interessados no voluntariado também podem preencher o cadastro no link https://casamilitar-rs.com.br/voluntariado/.

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