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Talibã é mais um desastre da ação externa dos EUA, diz professor da UnB

O Talibã retomou o Afeganistão em só duas semanas e quase sem resistência. Para Juliano Cortinhas, especialista em política externa e de defesa, a situação foi resultado de sucessão de erros dos EUA

Juliano Cortinhas, da UnB: "não há dinheiro no mundo que compre a construção de um país" (UnB/Reprodução/Reprodução)

Juliano Cortinhas, da UnB: "não há dinheiro no mundo que compre a construção de um país" (UnB/Reprodução/Reprodução)

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Carolina Riveira

Publicado em 16 de agosto de 2021 às 19h54.

Última atualização em 25 de janeiro de 2022 às 14h35.

Em março deste ano, quando quase tudo o que se falava sobre o governo Joe Biden eram as vacinas contra a covid-19, a política ambiental e os pacotes trilionários de investimento, o professor Juliano Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, alertava para um outro problema: a retirada das tropas americanas do Afeganistão, que Biden prometeu que ocorreriam até setembro.

"Isso pode trazer um grande desafio ao governo Biden", disse à EXAME na ocasião.

Quatro meses depois, os americanos assistiram neste domingo, 15, ao colapso do Estado afegão que ajudaram a construir. A cena dos guerrilheiros do grupo tomando o palácio presidencial em Cabul, após o presidente Ashraf Ghani fugir às pressas do país, marca o fim da guerra iniciada por George W. Bush em 2001, após o 11 de setembro.

Para Cortinhas, que estuda há duas décadas a política externa e de defesa dos EUA, a pouca resistência que o Talibã encontrou mostra o tamanho das falhas no modelo de intervenção americana. "Não há dinheiro no mundo que compre a construção de um país", diz. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Juliano Cortinhas, especialista em defesa na UnB: "difícil crer que o discurso de moderação do Talibã vá se concretizar" (UnB/Reprodução/Reprodução)

Por que a retomada do Talibã foi tão mais rápida do que se esperava? O que levou o Exército afegão a não apresentar resistência?

De fato os EUA deram equipamentos para o exército afegão, fizeram treinamentos. Houve momentos em que o Talibã se enfraqueceu, mas nunca se desestruturou totalmente. E com uma sociedade afegã que não apoiava totalmente o governo nacional. Os EUA já vinham retirando tropas, inclusive negociando com o Talibã, porque entenderam que era uma força política na reorganização do país.

Só que o Talibã não é apenas uma força política, mas um grupo armado. E nem a inteligência dos EUA previa que ainda estavam com tamanha capacidade de organização. Os EUA subestimaram o Talibã. O exército afegão não é uma força minimamente capaz de combatê-lo — primeiro porque não está organizado com armamentos para luta armada dentro das cidades, de guerrilha, algo que o Talibã está muito mais habituado a fazer. E se nem o exército dos EUA conseguiu de fato vencer o Talibã, quem dirá o exército afegão sozinho.

A oposição critica o governo Biden por ter feito uma saída considerada apressada, enquanto Biden culpa os acordos feitos no governo Trump [que previam a retirada das tropas até maio]. Qual foi a parcela de culpa desses governos?

Cada um dos presidentes americanos dos últimos 20 anos precisa ser responsabilizado. Primeiro foi George W. Bush, por ter feito a operação. Claro que ele tinha de dar uma resposta ao 11 de setembro, mas essa resposta deveria ter sido construída a partir de esforços de inteligência. A "Guerra ao Terror" não tinha qualquer chance de dar certo.

Cemitério de Arlington: EUA chegaram a ter mais de 100.000 soldados no Afeganistão (Alex Wong/Getty Images)

Depois disso, Obama fez tentativas de diminuir o número de tropas e de diminuir seu compromisso com as autoridades locais, porque uma hora precisaria sair. E Trump, sem nenhum tipo de assessoria adequada, sem planejamento, foi renegociando com os talibãs. Um dos líderes do Talibã que agora pode assumir o poder já esteve preso, foi solto pelo governo Trump nessas negociações. Tudo foi enfraquecendo a posição dos EUA na região, e acabou limitando as opções do próprio Biden ao assumir. Mas isso não tira a responsabilidade do governo Biden. A retirada precisava ser feita, mas foi feita de forma desorganizada, sem que houvesse resistência local, sem coordenação de órgãos multilaterais, como a própria ONU, que poderiam ter sido mais bem usados nesse processo de saída. Foi erro atrás de erro.

Por que a construção do Estado afegão não deu certo?

Não se modifica um regime de fora para dentro: é importante que a sociedade local seja a principal base da construção de um governo. Até é possível fazer eleições, criar instituições, como os EUA criaram, mas se essas mudanças não entram na mente das pessoas, elas não se sentem representadas. A manutenção de regimes tem de acontecer diariamente.

Nós aqui no Brasil estamos vendo isso, as instituições sendo testadas. Nos EUA, eles também viram, Trump testou muito as instituições. Elas prevaleceram porque há um apoio interno dos cidadãos, que entendem a democracia como algo que deve ser preservado. Mas se já é difícil no próprio Ocidente, que tem essas experiências democráticas historicamente, imagine em um país que nunca teve nada parecido. A intervenção no Afeganistão foi projetada para imitar uma experiência histórica dos EUA. A democracia que eles queriam implementar era a democracia dos EUA, não a afegã.

Muito antes da invasão de 2001, analistas sempre apontam o papel dos EUA e da União Soviética no surgimento do Talibã. Isso foi de fato um marco no Afeganistão?

A história do Afeganistão remete a milhares de anos, então antes da Guerra Fria, é claro que havia instabilidade, mas eu diria que era mais controlada de alguma forma. A invasão soviética no Afeganistão em 1979 é, sim, um episódio importante, porque foi uma incursão de uma das duas superpotências no local. A URSS tinha o intuito de obter uma saída para os mares quentes, e o Afeganistão seria um passo geoestratégico. Do outro lado, atores políticos locais e guerrilhas começam a se organizar contra os soviéticos, e obtêm apoio da CIA [agência de inteligência americana]. As guerrilhas mujahidin, como eram chamadas, conseguiram fazer com que a URSS sofresse muitas perdas nos dez anos de ocupação, e são inclusive um dos fatores que levaram à derrocada soviética.

Cena de Rambo III: filme mostra parceria entre americanos e guerrilhas que viriam a formar o Talibã (TriStar Picutres/Divulgação)

Só que isso gera novas disputas e novas rupturas, e nesse contexto surge o Talibã, usando muitos dos armamentos levados ao país pelos soviéticos e principalmente pela CIA, que foi armando os cidadãos para combater a URSS, o que se volta contra os próprios EUA depois. É interessante observar como isso foi retratado muito por Hollywood, Rambo vai ao Afeganistão e luta contra os soviéticos ao lado dos grupos que depois formariam o Talibã. Esse é o tamanho do papel do Afeganistão, quer dizer, o grande herói da Guerra Fria de Hollywood também esteve por lá. É um retrato muito interessante da época, e é feita uma homenagem clara aos afegãos que lutaram contra os soviéticos.

Muito tem se dito sobre o Talibã estar voltando mais "moderado". O que acontece no Afeganistão agora?

Existe uma questão importante a ser considerada que é o papel de China e Rússia, que foi bastante comedido nos últimos anos, mas pode crescer agora. O Afeganistão está muito próximo da zona de influência da China, inclusive geograficamente. Há também toda uma área de instabilidade ali entre Paquistão, Índia e China — a Caxemira. A Rússia, claro que hoje está um pouco mais distante, mas também tem interesses que permaneceram. Essas questões geopolíticas globais passam a ser muito importantes, e inclusive podem trazer um efeito de longo prazo para Biden e os americanos.

E temos de olhar também para as vidas, o Talibã tem feito um discurso de moderação, mas é difícil crer que isso vá se concretizar com o tempo. Vemos cenas desastrosas de fuga de afegãos do país, a tentativa de civis de subir em aviões que estão decolando, é lastimável, muito preocupante, e tudo isso tem relevância.

Zinat Karimi, de 17 anos, levanta a mão em aula do ensino médio em Kabul, no mês passado: chegada do Talibã ao poder deve ser desastrosa para mulheres no Afeganistão (Paula Bronstein/Getty Images)

Qual será esse papel da China no Afeganistão?

Sabemos que a China tem ganhado força em regiões na periferia do sistema internacional, na África, Ásia, a própria América Latina. Os chineses têm oferecido opções de investimento, mas sem uma preocupação de exigir mudanças nos regimes locais. Pequim tem uma visão muito mais pragmática [que os EUA] de construção de influência no mundo. Eu não acho que estejamos diante de uma nova Guerra Fria, porque as relações são muito diferentes, mas é possível que o Afeganistão se torne uma zona de testes da capacidade chinesa de construir relações com países extremamente difíceis.

O fim da presença americana no Afeganistão mostra uma queda no poderio dos EUA em política externa?

O fato de os EUA alterarem sua matriz energética nos últimos anos, terem conseguido autonomia em relação ao petróleo do Oriente Médio, é importante porque tende a haver uma tendência de menos atividade na região. E é fato também que os EUA estão declinantes e a China, emergente. O próprio Obama já tinha anunciado o "shift to Asia" [mudança para a Ásia]. Trump investiu menos em política externa, e Biden só agora começa a mostrar suas inclinações, mas também voltadas para a Ásia. Só que isso gera uma série de instabilidades que são bastante problemáticas, há uma série de conflitos emergentes. Por exemplo, há pouco tivemos toda a questão Israel e Palestina, agora o Afeganistão. É uma zona instável.

E o Afeganistão mostra mais uma catástrofe provocada pela política externa dos EUA. Eles não têm capacidade de ler esses territórios que são culturalmente diversos, e mais uma vez mostraram que não conseguem aprender as lições que deveriam ter aprendido desde a Coreia, desde o Vietnã, desde o Iraque. Ficou claro que não há dinheiro no mundo que compre a construção de um país. Essa é uma atividade que cabe aos habitantes daquele local, às pessoas que estão ali envolvidas. Alguns países demoram mais, outros menos, mas essa não é uma atividade que possa vir de fora.

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