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No Quênia, quem fura quarentena vai para campo de isolamento

Cidadãos parados pela polícia por violar o toque de recolher ou por não usar máscaras são levados para campo de quarentena e têm que pagar para sair

QUÊNIA: com medidas severas, o país tem pouco menos de 2.000 infectados (Khadija Farah/The New York Times)

QUÊNIA: com medidas severas, o país tem pouco menos de 2.000 infectados (Khadija Farah/The New York Times)

Felipe Giacomelli

Felipe Giacomelli

Publicado em 29 de maio de 2020 às 14h47.

Quando Valentine Ochogo chegou em casa no Quênia depois de ser demitida de seu emprego em um negócio de balões de ar quente em Dubai, foi colocada em quarentena em um dormitório universitário com outros viajantes – um dos passos na campanha agressiva e muitas vezes elogiada do governo para evitar a propagação do coronavírus.

Mas, em vez do período de quarentena de 14 dias, ela ficou confinada por 32 dias, muitas vezes sentindo frio e fome, e tão assustada que disse que bloqueou a porta do quarto durante a noite com uma cama vazia. Embora os três testes que fez tenham dado resultado negativo para o coronavírus, ela disse que os funcionários do governo não a liberariam até que ela pagasse US$ 434 em taxas.

Depois que conseguiu negociar a quantia e baixar o valor para US$ 65, Ochogo, de 26 anos, foi liberada. "Saí", escreveu Ochogo em uma mensagem aliviada em 24 de abril, afirmando mais tarde: "Tive muita sorte."

O governo do Quênia enfrenta agora críticas crescentes por sua resposta à pandemia – particularmente, pelo uso de centros de quarentena.

Cidadãos parados pela polícia por violar o toque de recolher ou por não usar máscaras foram enviados não para delegacias de polícia, mas para a quarentena, às vezes mantidos em locais com pessoas infectadas.

"Durante uma emergência como esta, você precisa convencer as pessoas a cooperar em vez de coagi-las, especialmente se seu argumento é que isso é do interesse delas", disse o dr. Lukoye Atwoli, professor associado da Escola de Medicina da Universidade Moi e vice-presidente da Associação Médica do Quênia.

Em entrevistas, sete pessoas em quarentena ou recém-liberadas acusaram o governo de colocá-las em unidades de isolamento insalubres, mantendo-as por mais de 14 dias, dando-lhes comida e água inadequadas e deixando de informá-las dos resultados de seus testes. Muitas dizem que foram detidas até pagarem taxas caras.

Depois que 50 pessoas fugiram de um centro de quarentena em Nairóbi em abril, o governo foi forçado a responder: o Ministério da Saúde anunciou que deixaria de exigir que as pessoas em quarentena pagassem taxas porque essa política estava impedindo que outras se apresentassem para fazer testes.

Outra mudança da política foi anunciada: as autoridades colocarão aqueles que violarem o toque de recolher em um "local de detenção" designado – não em quarentena.

Autoridades do Ministério da Saúde, que inicialmente concordaram com uma entrevista para este artigo, cancelaram o encontro e se recusaram a responder a perguntas.

Alguns cidadãos e especialistas em saúde elogiaram o Quênia por sua resposta ao surto: o país suspendeu voos internacionais mais cedo, realizou dezenas de milhares de testes e impôs um bloqueio parcial em áreas que relatam muitos casos, como Nairóbi.

As medidas podem ter ajudado a controlar o número de casos nesta nação da África Oriental, com cerca de 47 milhões de habitantes que até agora registrou 607 casos, 29 mortes e 197 recuperações.

Mas o governo também foi acusado de atitudes extremas. Nos primeiros dez dias do toque de recolher, policiais quenianos mataram pelo menos seis pessoas enquanto tentavam impor o bloqueio, de acordo com o Human Rights Watch.

E o vírus continua se espalhando. Autoridades recentemente impuseram bloqueios em um bairro em Nairóbi e em outro em Mombaça, onde se diz que o vírus está se proliferando.

Mesmo que o Ministério da Saúde tenha pedido que os cidadãos se apresentassem para testes, autoridades do governo em outros lugares disseram que forçariam os residentes a se submeterem a testes em massa.

Mas especialistas afirmaram que o mau tratamento daqueles mantidos em centros de quarentena poderia desencorajar as pessoas de relatar sintomas ou de se voluntariar para testes.

As pessoas que, como Ochogo, chegaram ao Quênia no fim de março relataram que seus problemas começaram no aeroporto de Nairóbi, com filas imensas para passar pela imigração, passageiros se empurrando e funcionários não conseguindo impor o distanciamento social.

Muitas chegadas do Oriente Médio eram de trabalhadores do setor de serviços, como babás e motoristas.

Aqueles que podiam pagar eram escoltados para hotéis, mas outros foram levados para instalações do governo e lhes disseram que sua estada seria gratuita, como afirmaram várias pessoas.

Ochogo contou que ela e mais de duas dúzias de passageiros embarcaram em um ônibus, sem equipamento de proteção, e foram levados a princípio para uma instalação que estava cheia. Por volta da meia-noite, eles finalmente chegaram aos dormitórios da Universidade Kenyatta, onde policiais sem máscara, luvas ou desinfetantes para as mãos ajudaram a descarregar suas malas. Ochogo contou que não foram fornecidas orientações ou instruções.

Ela pegou as chaves do quarto e foi para a cama.

Em outro centro de quarentena em Nairóbi, estabelecido no Hospital Mbagathi, Shabu Mwangi disse que funcionários o repreenderam por ter viajado para a Itália – em meados de janeiro. Ele tinha ido voluntariamente para o centro de quarentena com sintomas de gripe um dia depois de chegar ao Quênia em março.

Ele foi forçado a permanecer em seu carro por uma hora. Então, os médicos chegaram. "Mas a grande preocupação deles era: 'Por que você foi para a Europa?'", contou Mwangi, artista de 35 anos.

Durante os três dias em que aguardou os resultados dos testes, ele contou que foi colocado em uma sala com outros nove homens, que se misturavam livremente e até emprestavam carregadores de telefone um ao outro. Os médicos não lhe deram nenhum remédio. Seu teste deu negativo, mas, segundo ele, o de um burundinês na sala deu positivo.

Eko Dydda, um músico gospel, estava entre centenas de pessoas colocadas em quarentena por desafiar o toque noturno de recolher. Ele disse que foi preso enquanto buscava remédios para sua esposa doente. Depois de passar uma noite na cadeia e três dias em quarentena, Dydda foi liberado após um protesto público.

"A quarentena não pode ser uma resposta às pessoas que infringem a lei, porque o que isso gera é a exposição à possibilidade de infecção, exatamente o que você está tentando combater", declarou George Kegoro, diretor executivo da Comissão de Direitos Humanos do Quênia, uma organização não governamental.

À medida que mais pessoas eram admitidas em centros de quarentena estabelecidos em dormitórios escolares e em outros edifícios do governo, o coro de desaprovação no país crescia. As pessoas postavam fotos e vídeos nas redes sociais de banheiros sujos e quebrados em instalações superlotadas, onde alguns dormiam no chão cobertos apenas com lençóis.

Mesmo algumas pessoas confinadas em hotéis alegaram não receber comida, porque não tinham pagado taxas. Outras reclamaram que ficaram sem medicamentos.

A Rede de Questões Legais e Éticas do Quênia, uma organização não governamental, e o Instituto Katiba, sem fins lucrativos, juntamente com sete pessoas que dizem ter sido mantidas em quarentena, abriram um processo contra o governo por violar os direitos humanos de quem é obrigado a passar pelo processo.

Quase três semanas após sua estada na Universidade Kenyatta, Ochogo contou que sofreu um ataque de ansiedade. Enquanto chorava por horas seguidas, ela disse que ligou e mandou uma mensagem para os funcionários da saúde pedindo ajuda. Eles prometeram vir, mas ninguém veio.

Quando os funcionários apresentavam às pessoas contas às vezes totalizando centenas de dólares, exigindo o pagamento antes que pudessem sair, aquelas em quarentena em lugares como a Universidade Kenyatta organizaram protestos públicos.

"Saímos de Dubai porque não tínhamos emprego", explicou Ochogo, que tinha US$ 200 consigo quando chegou.

Ela e outros confrontaram os funcionários da saúde sobre os pagamentos e os atrasos em sua liberação. "Eles me disseram que eu era rude e, de alguma forma, queriam dar um jeito em mim. Avisaram que tinham nos marcado."

Quando um agente de segurança ameaçador do centro usou um estratagema para descobrir seu nome completo, ela bloqueou a porta de seu quarto com uma cama sobressalente à noite: "Temi pela minha vida."

As leis do Quênia dizem que colocar uma pessoa em quarentena deve envolver um médico e um magistrado, informou Kegoro, da Comissão de Direitos Humanos do Quênia. O custo do isolamento, acrescentou, também deve ser bancado pelo Estado.

"O governo tem uma lei, que foi posta de lado. Não podemos dizer de onde seus poderes estão vindo", afirmou Kegoro sobre as recentes decisões de fazer os pobres quenianos pagarem.

Dias depois de voltar para casa, Ochogo contou que ainda estava atordoada por causa de sua provação na quarentena. "Nem me reconheço. Não consigo fazer as coisas que costumava fazer. Ainda estou lutando para dormir à noite."

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