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Governo uruguaio atrai argentinos ricos que fogem da crise

Uruguai aprovou um projeto que facilita a entrada de estrangeiros ricos, de olho nos milionários argentinos que desejam mudar a sede das empresas

De acordo com a revista britânica The Economist, 20 mil argentinos já teriam dado entrada em pedidos de residência no outro lado do Rio da Prata (Wavebreakmedia Ltd/Thinkstock)

De acordo com a revista britânica The Economist, 20 mil argentinos já teriam dado entrada em pedidos de residência no outro lado do Rio da Prata (Wavebreakmedia Ltd/Thinkstock)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 30 de novembro de 2020 às 09h42.

Última atualização em 30 de novembro de 2020 às 16h17.

A crise argentina vem causando atrito entre os governos conservador de Luis Alberto Lacalle Pou, do Uruguai, e o peronista Alberto Fernández, da Argentina. A pandemia afetou as exportações argentinas e interrompeu o turismo, minguando os dólares. Aos problemas de caixa, Fernández reagiu com aperto fiscal e um projeto de taxar grandes fortunas, aprovado pelos deputados na semana passada. Do outro lado do Rio da Prata, Lacalle Pou acena com incentivos para atrair argentinos ricos.

Ciente da crise no país vizinho, o presidente do Uruguai propôs, em junho, um projeto para facilitar o assentamento de estrangeiros ricos, de olho nos milionários argentinos que desejam mudar a sede das empresas para um ecossistema econômico mais confiável, com menos impostos e perto de casa.

Aprovado pelo Congresso em agosto, o decreto de Lacalle Pou baixou o teto para o estrangeiro que quiser se qualificar como residente. Agora, eles precisam comprar um imóvel de no mínimo US$ 380 mil - antes era de US$ 1,7 milhão. Para empresários, o investimento inicial foi cortado de US$ 5,5 milhões para US$ 1,6 milhão. A isenção de parte dos impostos duplicou, de cinco para dez anos. Além disso, a obrigação de passar um tempo no país baixou de seis para dois meses.

De acordo com a revista britânica The Economist, 20 mil argentinos já teriam dado entrada em pedidos de residência no outro lado do Rio da Prata. Fernández reagiu ao êxodo, determinando que os argentinos que se mudarem terão de viver no Uruguai por pelo menos seis meses do ano, podendo ficar apenas 90 dias na Argentina.

A desvalorização do peso argentino, que começou em 2016, mas disparou em 2018 e 2019, fez com que a moeda local se tornasse uma das mais fracas da América Latina. Em janeiro de 2016, um dólar equivalia a 15 pesos. Hoje, vale 87 pesos, embora seu verdadeiro preço (no mercado ilegal e paralelo) seja 156. A economia da Argentina, a terceira maior da região - depois de Brasil e México -, diminuiu muito, quando calculada em dólar: está 40% menor se comparada a 2008.

A falta de confiança na economia, o ambiente ruim para os negócios e uma agressiva política fiscal, que inclui restrições cambiais e à remessa de lucros para o exterior, vêm provocando uma fuga não só de multinacionais, mas de cidadãos. A reação de Fernández tem sido a negação da crise, pelo menos publicamente.

No dia 3, o ministro da Produção, Matías Kulfas, chamou de “mito” o êxodo em massa. Em relatório, o ministério afirmou que, “nas últimas semanas, se instalou na agenda a ideia de que a Argentina estaria sofrendo um suposto êxodo de empresas, em decorrência das políticas anti-investimento vigentes no país”. “Tivemos alguns casos pontuais. Mas este não é um problema só argentino”, disse Kulfas.

O governo descreve o cenário como “falso”, pois muitas empresas prometeram investimentos ainda neste ano. Para o ministro do Trabalho, Claudio Moroni, “não existe uma situação particular na Argentina que provoque a saída de empresas, mas sim decisões empresariais tomadas por motivos diferentes”.

Os problemas econômicos da Argentina são cada vez mais influenciados pelo confronto crescente entre as duas principais alas da coalizão governamental: o kirchnerismo, de Cristina, e o peronismo mais tradicional, de Fernández. O primeiro tem força em Buenos Aires e no Congresso - metade dos deputados e senadores responde cegamente à liderança da vice-presidente.

Fernández conta com o apoio dos governadores mais centristas (exceto o da Província de Buenos Aires) e dos sindicatos peronistas. A divisão é palpável não apenas na política econômica, mas também em várias batalhas legislativas, como a eleição do próximo procurador-geral do Estado e o projeto para mudar as primárias.

As diferenças estão se tornando cada vez mais evidentes: Cristina e o presidente não se viam pessoalmente havia 72 dias, até que a morte de Diego Maradona reuniu os dois no tumultuado velório do craque na Casa Rosada.

A crise econômica e a instabilidade política não se restringem ao mundo empresarial ou aos veículos de comunicação. O impulso para deixar o país é um fenômeno social que está se tornando cada vez mais visível em conversas informais entre amigos, colegas de trabalho e parentes.

Hoje, é difícil encontrar um argentino que, em algum momento da conversa, não comente sobre um conhecido que pensa em sair da Argentina ou que pretende acionar os procedimentos para adquirir a cidadania de algum país da União Europeia - um porcentual muito elevado da população tem pelo menos um avô ou bisavô europeu.

De acordo com um relatório da consultoria de recursos humanos Randstad Argentina, os pedidos para encontrar trabalho no exterior dispararam. Segundo os dados, a primeira opção é a Espanha (26%), seguida de EUA (21%), Itália, Chile e Uruguai (7%) e Canadá (2%).

A Randstad afirma que os profissionais argentinos mais requisitados são cientistas da computação, engenheiros, economistas e publicitários. O relatório indica ainda que 84% dos trabalhadores argentinos consideram a possibilidade de seguir carreira no exterior.

Instabilidade acelera fuga de empresas da Argentina

O presidente argentino, Alberto Fernández, vem encontrando dificuldades para tomar um rumo diferente de sua vice, Cristina Kirchner. A mistura entre o peronismo moderado de Fernández e o kirchnerismo radical de Cristina, somado à desaceleração econômica por conta da pandemia, vem causando a maior saída de empresas multinacionais da Argentina desde a crise de 2002.

O auge da fuga ocorreu entre agosto e setembro, depois que a Casa Rosada anunciou novas restrições à compra de dólares e à transferência de lucros para o exterior. A escassez de moeda forte no Banco Central, em razão do colapso das exportações e da queda do fluxo de turistas, impulsionou as medidas que assustaram as empresas de capital estrangeiro.

Os casos mais alarmantes foram os da Falabella, loja de departamento chilena - que inclui a CMR e a Sodimac -, da Latam, que não se retirou da Argentina, mas cancelou todas suas operações domésticas, e a da gigante americana Walmart, que foi comprada pelo ex-candidato a presidente Francisco De Narváez, uma espécie de Berlusconi argentino.

Outras multinacionais que deixaram a Argentina foram Wrangler, Nike, a companhia telefônica Brightstar, a farmacêutica Pierre Fabre, além das aéreas Air New Zealand, Qatar Airlines e Norwegian Air. No último semestre, todas elas já haviam informado que estavam encerrando suas atividades no país. Três empresas do setor automotivo informaram a migração das operações para o Brasil: Basf, Saint-Gobain e Axalta.

Quem também está se despedindo da Argentina é a Danone, que deve deixar o país em 2021. Os ativos locais da gigante francesa devem ser comprados pela Arcor, uma das maiores empresas de alimentos de capital argentino, de acordo com fontes com acesso à gestão da multinacional.

O faturamento da Danone caiu 9,3% no terceiro trimestre e o CEO da empresa anunciou, nos últimos dias, uma “revisão” de seus negócios na Argentina para reorganizar suas marcas. Quando questionados, representantes da empresa responderam ao Estadão que “não sabem quando terão as conclusões” desta revisão, que pode durar até um ano, embora não tenham negado a possibilidade de entrar na lista de empresas que decidiram sair do país.

O caso da Danone é emblemático por se tratar de uma empresa de laticínios global e de a Argentina ser um país com perfil agroexportador e um dos maiores produtores de leite do mundo - em campanhas políticas, é comum ver os candidatos repetindo que o país deveria industrializar sua produção para se tornar “a França da América Latina”.

Mas não são apenas as grandes empresas que sofrem com o colapso da confiança e da lucratividade na Argentina. De acordo com dados Administradora Federal de Ingressos Públicos (Afip), órgão que administra a arrecadação de tributos, 24 mil empresas fecharam as portas em 2020, sendo a grande maioria pequenas e médias. Em outubro, a Confederação Argentina de Médias Empresas (Came) alertou que as pequenas e médias empresas estavam em “alerta vermelho” e calculava que cerca de 60 mil “já fecharam ou estão sob risco de encerrar suas atividades em razão do impacto da pandemia”.

O economista e diretor da consultoria Analytica, Ricardo Delgado explicou ao Estadão que muitas das decisões de deixar o país têm a ver com “estratégias globais adotadas nas sedes das empresas”. Ao redefinir a ordem de prioridades, segundo ele, a “Argentina fica muito baixo no ranking”, não só por questões regulatórias, mas também em razão da decisão do Banco Central de restringir a transferência de moeda estrangeira para o exterior.

“Quando as operações normais entre fronteiras são limitadas, a Argentina fica em desvantagem com relação à concorrência com outras subsidiárias ao redor do mundo”, afirma. Além disso, outro elemento essencial é “a queda acentuada do consumo interno e a limitada capacidade de recuperação nos próximos anos, tanto em pesos argentinos como em dólares. “O barateamento da Argentina, em razão da desvalorização, é bom para produzir, mas ruim para consumir. Então, não há expectativa de boa rentabilidade no futuro.”

Delgado diz que os gestores das empresas tendem a compartilhar “visões negativas” de um governo kirchnerista, “porque o olhar para o passado influencia”. “Se a principal acionista do governo é Cristina, isso traz a lembrança das restrições à venda de dólar, da desapropriação da Repsol e dos problemas para importar”, disse. “Por isso, o medo do governo torna-se um problema macroeconômico.”

O economista lembra dois sinais ruins da Casa Rosada para o mercado. O primeiro foi a restrição à transferência de moeda. O outro foi o anúncio da expropriação da Vicentin, principal empresa exportadora de óleo e farelo de soja da Argentina, que corria risco de falência.

Diante da oposição que o projeto sofreu, Fernández recuou, mas pagou um alto custo político. “Da mesma forma, e embora seja a maior saída de empresas desde 2002, a Argentina não está a caminho de ser a Venezuela, nem com as expropriações nem com a fuga em massa de multinacionais”, garante Delgado.

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