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Governo Milei corta programa argentino para prevenir gravidez na adolescência

Programa argentino foi criado em 2018 e era modelo na América Latina; especialistas temem medidas para dificultar aborto legal

Javier Milei, presidente da Argentina (Juan MABROMATA/AFP Photo)

Javier Milei, presidente da Argentina (Juan MABROMATA/AFP Photo)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 18 de abril de 2024 às 07h06.

Entre 2018 e 2021, o número de gestações entre adolescentes argentinas entre 15 e 19 anos caiu de 69.803 para 46.236. No mesmo período, graças à implementação do Plano Nacional de Prevenção da Gravidez Não Intencional na Adolescência (Enia, na sigla em espanhol), a taxa de fecundidade (quantidade de filhos nascidos em um ano em relação ao total de adolescentes do país) caiu 22 pontos percentuais, passando de 49,2% para 27%.

O plano, que é considerado por especialistas modelo para a América Latina e para o mundo, acaba de ser cortado pela motosserra do presidente Javier Milei.

Segundo confirmou esta semana o porta-voz da Presidência, Manuel Adorni, o forte ajuste aplicado ao Ministério da Saúde argentino incluiu a não renovação dos contratos de trabalho de 619 profissionais da área da Saúde que atuavam no Enia. Na prática, o Enia acabou, explicou ao GLOBO a socióloga Silvina Ramos, pesquisadora do Centro de Estudos de Estado e Sociedade (Cedes) e ex-coordenadora do programa.

— O que aconteceu é um balde de água fria para as mulheres argentinas e do resto da América Latina, porque nos últimos anos nosso país se tornou um farol para a região — diz Ramos, que foi peça-chave na elaboração do principal programa que a Argentina já teve para prevenir que adolescentes engravidem sem querer. — Por um lado, esperava que isso acontecesse porque a única estratégia deste governo é cortar despesas. Mas, por outro, não esperava o fim do Enia, um plano com resultados impactantes. Cada gravidez adolescente que evitamos é pelo custo de apenas US$ 60 para o Estado.

Desde que a notícia foi confirmada pela Casa Rosada, ONGs locais questionaram a decisão de Milei. Diante das reações, o Ministério da Saúde divulgou um comunicado no qual fala em “redesenho” do Enia e na transferência da responsabilidade de sua implementação às províncias. A realidade, frisa Ramos, é que os governos provinciais não têm recursos para financiar o plano.

— Redesenho é um eufemismo: sem recursos, o plano acaba — afirma a socióloga.

Aborto

O fim do Enia é visto por acadêmicos e profissionais da Saúde como um retrocesso grave da Argentina em matéria de saúde reprodutiva. Um dos temores que paira sobre o país é o de que o governo Milei também retire o financiamento e acabe esvaziando outras conquistas das argentinas, entre elas a legalização do aborto. O presidente nunca escondeu sua oposição à lei — e sua opinião de que o aborto é um assassinato agravado pelo vínculo — e, sem maioria no Congresso para derrubá-la, poderia simplesmente cortar os recursos necessários para comprar os medicamentos usados para abortar legalmente. Ou, como fez com o Enia, exigir que as províncias, em grave situação financeira, sejam as encarregadas de comprar os medicamentos necessários para realizar um aborto seguro, legal e gratuito, como estabelece a lei nacional.

Segundo a pesquisadora do Cedes, “os insumos que estão sendo usados [para abortos legais] foram comprados pelo governo anterior [do presidente Alberto Fernández]. Este governo ainda não realizou novas licitações”.

— A Direção Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva ainda está acéfala. Todo governo tem um período de adaptação, mas, neste caso, somam-se a inexperiência na administração pública e uma questão ideológica — aponta Ramos, lembrando que o Plano Enia foi aprovado e implementado no governo do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2018), hoje aliado de Milei, mas menos radical que o presidente em questões comportamentais.

Perguntado sobre a decisão do governo, o porta-voz da Casa Rosada repetiu o mesmo posicionamento de sempre:

— Vamos desmontar o Estado empobrecedor, que a única coisa que fez foi favorecer funcionários dos governos anteriores.

Na visão do ginecologista Mario Sebastiani, um dos principais especialistas em saúde pública do país, “os números do Enia falam por si sós: passamos de 112 mil partos em 2019 entre menores de 19 anos para 46 mil em 2021. Em meninas de menos de 15 anos, o número caiu de 3 mil para 1.394”. Sebastiani, como Ramos, vê retrocessos preocupantes.

— A gravidez adolescente afeta o estudo e o trabalho das jovens mulheres que, na maioria dos casos, passam a depender economicamente de seu parceiro. No caso de famílias pobres, a gravidez adolescente aprofunda a pobreza do núcleo familiar — assegura o médico argentino.

De acordo com pesquisa realizada em conjunto pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa, na sigla em inglês) e o agora extinto Plano Enia argentino, apenas 38% das mulheres que tiveram filhos entre os 15 e 19 anos completaram o Ensino Médio, contra 55% das que foram mães entre os 20 e 29 anos.

O programa esvaziado pelo governo Milei tem como principais objetivos sensibilizar a população sobre a importância de prevenir gestações não intencionais na adolescência; melhorar a oferta de serviços em matéria de saúde sexual e reprodutiva; informar as adolescentes para que possam tomar suas decisões e exercer seus direitos e fortalecer políticas públicas para a prevenção do abuso e da violência sexual contra adolescentes.

Cerco a direitos das mulheres

— O que estão fazendo com o Plano Enia é um exemplo da falta de racionalidade deste governo e com uma luta pessoal do presidente e membros de seu Gabinete contra direitos conquistados pelas mulheres — opina a advogada e uma das fundadores do movimento Nenhuma Menos, Ana Correa.

Ela lembra que "a gravidez adolescente era um problema gravíssimo na Argentina, e causa mais empobrecimento, desigualdade e violência contra a mulher”.

— Estamos falando de meninas que em vez de irem à escola ou brincar são mães. Vejo uma obsessão por fazer ajustes sem pensar o que está sendo ajustado — enfatiza Correa, destacando, ainda, cortes na compra de medicamentos oncológicos, aposentadorias miseráveis, entre outras medidas.

No caso das mulheres, em geral, Sebastiani conclui que o governo Milei tem “um viés claramente misógino”:

— Os argumentos apresentados são ruins e facilmente derrubados por evidências científicas.

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