Os três países são exemplos na adoção da maior criptomoeda do mundo (KTSDESIGN/SCIENCE PHOTO LIBRARY/Getty Images)
Inflação elevada, fragilização da moeda nacional, dificuldades em conseguir crédito e crises econômicas em geral são características comuns à uma série países, mas alguns deles têm adotado uma nova estratégia para resolver seus problemas: as criptomoedas, em especial o bitcoin (BTC).
Antes mesmo que El Salvador, em 2021, e a República Centro-Africana, neste ano, adotassem o bitcoin como moeda de curso forçado, a criptomoeda já era uma alternativa relativamente comum em vários outros lugares, como Argentina, Venezuela e Nigéria, que há alguns anos sofrem graves crises econômicas e uma inflação gigantesca.
Por serem bastante recentes, ainda é cedo para dizer se alguma dessas iniciativas foi bem ou mal sucedida, mas o fato é que uma nova forma de lidar com crises econômicas apareceu nos últimos anos e tem se tornado mais comuns e intensas.
Em 7 de setembro do ano passado, uma nova era se iniciou no universo cripto: El Salvador, país com PIB de US$ 24,64 bilhões (em 2020) e população de 6,5 milhões de pessoas, que usava o dólar como moeda oficial havia duas décadas, adotou o bitcoin como moeda oficial, tornando-a moeda de curso legal.
Na época, a justificativa do governo do presidente Nayib Bukele era de que boa parte do PIB do país vinha de remessas internacionais, de salvadorenhos vivendo fora do país que enviam dinheiro para suas famílias todos os meses e, para isso, gastavam uma fortuna em taxas e tinha um serviço lento e burocratizado. Com o bitcoin, poderia economizar nas taxas, adicionando o valor excedente na economia do país, e ter um serviço muito mais simples e ágil.
Bukele também falou algumas vezes sobre reduzir o elevado número de pessoas desbancarizadas em El Salvador, aqueles sem acesso a serviços financeiros especialmente por causa de barreiras econômicas, e em atrair investimentos e capital estrangeiros para o país.
A medida, no entanto, trouxe certos problemas ao país: o Fundo Monetário Internacional (FMI), sempre crítico à medida, pediu a revogação completa da chamada Lei Bitcoin poucos meses após sua implementação, sob a alegação de que “a adoção do bitcoin como moeda gera uma série de questões macroeconômicas, financeiras e legais, que requerem uma análise cuidadosa".
Além disso, uma das três principais agências de avaliação de crédito no mundo, a Fitch, rebaixou El Salvador para pouquíssima margem de segurança e risco real de calote. Segundo o relatório original, as reservas em BTC podem dificultar negociações com credores, tornando quase impossível conseguir crédito fora do país. Para completar, estudos mostram que o uso do bitcoin no dia a dia da população ainda está longe de se tornar comum.
Por outro lado, segundo a ministra do turismo de El Salvador, Morena Valzez, o turismo no país cresceu 30% nos meses que seguiram a implementação da lei. O fluxo de estrangeiros também mudou: enquanto antes a maioria vinha de países vizinhos da América Central, até 60% dos visitantes agora são dos Estados Unidos.
O COO da corretora cripto Brasil Bitcoin, Vinicius Bitzer, acredita que a estratégia do governo salvadorenho tem efeitos negativos: "Serve apenas para mascarar um problema econômico interno muito maior, pois, embora a adoção tenha atraído muita visibilidade ao país, ao analisar o impacto real da adoção do bitcoin [em El Salvador], vemos que a estratégia tomada por Bukele foi claramente equivocada".
Em 2021, enquanto o mundo começava a se recuperar da pandemia do Covid-19, um caso específico chamou a atenção de economistas e outros especialistas: o aumento no uso da stablecoin DAI pela população da Argentina. Um dos países mais endividados do mundo, com recorde de calotes no Fundo Monetário Internacional (FMI), uma dívida de US$ 44 bilhões, rigoroso controle cambial e uma inflação elevadíssima.
Como um dos países mais endividados do mundo, a Argentina se tornou um caso emblemático no uso de ativos digitais. Um estudo da Triple A realizado em 2021 revelou que quase 3% da população argentina já usa criptomoedas no dia a dia, o que representa um total de mais de 1,3 milhão de pessoas. Para eles, a criptomoeda DAI era uma forma de transformar pesos argentinos em dólares americanos com poucos cliques.
Movimento parecido aconteceu com o bitcoin. Se um salário em pesos poderia perder 70% do valor de um mês para o outro, quando trocado pela criptomoeda o movimento era o contrário, de valorização. E a perspectiva para o médio e longo prazos, muito mais otimista.
De olho nessa crescente adoção, o maior banco do país, o Galicia, anunciou na semana passada que seus clientes poderiam negociar cripto na mesma plataforma do banco usada para comprar ações. Alguns dias depois, entretanto, o Banco Central da República da Argentina (BCRA) proibiu que instituições financeiras do país oferecessem essa classe de ativos. De acordo com o órgão, a medida tinha como objetivo "mitigar os riscos associados com as operações envolvendo ativos digitais", que ainda não são regulamentados no país, como na maior parte do mundo.
Até a recente decisão do BCRA, entretanto, a Argentina teve uma série de experiências estatais envolvendo criptoativos. A cidade de Sorradino, na província de Santa Fé, por exemplo, decidiu começar a minerar criptomoedas como forma de restaurar sua malha ferroviária ao mesmo tempo em que protegeria suas reservas da inflação. Ou a sugestão da Fundação Inclusão Produtiva, instituição não-governamental da Argentina, que sugeriu ao governo a criação de uma CBDC e a eliminação do papel moeda nacional, o peso argentino.
"Vemos entre os argentinos uma tendência crescente na adoção de criptoativos como o bitcoin, e um interese especial em torno das stablecoins. A Argentina é hoje um dos 10 principais países em adoção das criptomoedas. Além do uso como investimento e reserva de valor, notamos que as criptomoedas estão se tornando cada vez mais úteis no dia a dia das pessoas, para transações ou pagamentos. Na Bitso, tivemos um aumento de transações de 118% entre 2020 e 2021 na Argentina", comentou Julián Colombo, Chefe de Políticas Públicas para Mercados em Expansão na corretora cripto.
No final de abril de 2022 a República Centro-Africana, um dos países mais pobres do mundo, com 6 milhões de habitantes e um PIB de 2 bilhões de dólares (2020), seguiu os passos de El Salvador e adotou o bitcoin como moeda de curso legal. A ideia é basicamente a mesma: aumentar o número de cidadãos com acesso a serviços financeiros, proteger seu dinheiro da inflação, etc.
No país africano, o bitcoin conviverá junto com o Franco Centro-Africano, moeda impressa na França e equivalente a US$ 0,0016. De acordo com o presidente Faustin Archange Touadera, “a decisão representa um passo decisivo na abertura de novas oportunidades no país”.
Uma das instituições que vai ajudar o governo da República Centro-Africana é corretora cripto MARA, que recebeu investimento privado de US$ 23 milhões, inclusive de empresas como a Coinbase, uma das maiores corretoras cripto do mundo. De acordo com Chi Nnandi, CEO da MARA, a educação é a chave para destravar o valor de cripto no continente africano, onde a exchange pretende iniciar sua operação no Quênia e na Nigéria.
"A grande questão é para quem serve a lei", disse David Gerard, escritor independente que acompanha cripto de perto há anos, à CNBC. "A cobertura de internet na República Centro-Africana é de 11%. Talvez tenham dito pro governo que isso vai impulsionar pagamentos no país, mas ainda não está claro como", completou.
Apesar do uso do BTC nesses países acontecer por necessidade, seu status como reserva de valor ainda não é garantido: “esse é um processo que leva tempo e depende de várias coisas, inclusive do contexto histórico do momento”, explica André Portilho, head de Digital Assets do BTG Pactual. Segundo ele, existem cinco características que um ativo que possa ser considerado uma reserva de valor precisa cumprir, são elas: escassez, estabilidade de preço, durabilidade, segurança e portabilidade.
“Hoje, o bitcoin não é uma reserva de valor. Mas possui características para que possa vir a ser uma no futuro. Esse é um processo que leva tempo e passa por as pessoas, primeiro, reconhecerem nele as propriedades e utilidades que façam com que comece a ser adotado. Depois, essa adoção tem que ganhar escala, e o bitcoin passar a ser aceito de forma mais ampla na sociedade”, completou ele em uma edição do Crypto Insights.
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