Quando a Justiça deveria ter vergonha de si mesma
Não é de se espantar que mulheres tenham receio de acusar abusadores sexuais
Bibiana Guaraldi
Publicado em 5 de novembro de 2020 às 09h14.
Última atualização em 5 de novembro de 2020 às 09h24.
O site Intercept, logo após a saída de Glenn Greenwald da sua equipe de profissionais, divulgou um grande furo jornalístico, que se tornou tema obrigatório de discussão – o vídeo que mostra o lamentável episódio no qual um advogado de defesa claramente desrespeita uma vítima de estupro. Essa moça, Mariana Ferrer, é levada às lágrimas por Gastão da Rosa Filho. O rábula tenta manchar a imagem da jovem para livrar a cara de seu cliente, o empresário André Aranha. Neste round, Rosa foi vencedor. Aranha foi inocentado na base de um tortuoso raciocínio que leva a uma tese esdrúxula, que ficou conhecida como “estupro culposo”. Segundo o magistrado deste caso, como a vítima não estava em suas plenas condições psicológicas, o acusado não teria como saber se haveria ou não consentimento para se consumar uma relação sexual. Esta tese só perde em estultice para a que atenuou, em 1977, a sentença do assassino da socialite Ângela Diniz, Doca Street: legítima defesa da honra.
Ora, se a mulher está sem condições para dizer “sim” ou “não” é sinal de que um ato sexual não deve ser cometido. Qualquer pessoa limítrofe consegue compreender algo do gênero – menos o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. Como a lei não prevê a existência de um estupro culposo, o réu foi absolvido por falta de provas. Mas há um detalhe: o código penal prevê a condenação por estupro de vulnerável – e Mariana, no momento da violação, estava exatamente em estado de vulnerabilidade.
Do mesmo jeito que a impunidade de Doca Street foi a porta aberta através da qual outros crimes passionais contra mulheres fossem cometidos, este é um caso que pode servir de exemplo para outras violências. Se a segunda instância não condenar Aranha, inúmeras jovens estarão à mercê de violentadores. É só jogar um comprimido dissolvido no copo de uma menina, esperar que ela perca os sentidos e afirmar ao juiz, depois, que houve um estupro culposo. Um verdadeiro absurdo.
A tática do advogado, que já defendeu figuras como Olavo de Carvalho e Sara Winter, foi a de mostrar que a vítima era uma mulher provocante, brandindo fotos que julgava indecentes (a moça estava totalmente vestida nos retratos, diga-se). Se estivéssemos em um filme americano, este seria o momento em que ouviríamos o grito de “protesto!” vindo do outro lado da banca. Mas, nada aconteceu. O Ministério Público declarou nos jornais de hoje que as imagens divulgadas foram editadas e não correspondem à realidade. Pode ser. Contudo, a deselegância de Rosa é 100% real, assim como a sentença abominável.
Vamos dizer que a conduta da vítima fosse duvidosa. E daí? Não se deve avançar em uma moça que está praticamente desmaiada, essa é uma regra básica do comportamento masculino civilizado. Mas como a garota poderia ser promíscua, como sugeriu o defensor do réu, se na época da agressão tinha 21 anos e era virgem, como foi comprovado pelos exames de corpo pericial?
O vídeo postado pelo Intercept causa náuseas ao mostrar a torpeza com a qual Gastão Rosa trata uma vítima de violência sexual. “Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”, fustiga o advogado. “Manipular”? Como assim? A polícia forense atestou a virgindade da moça. Desde quando alguém manipula os demais apenas por falar a verdade?
Não é de se espantar que mulheres tenham receio de acusar abusadores sexuais. A técnica sórdida usada por Gastão é frequente nos tribunais brasileiros e estrangeiros. “Ela bebeu demais”, “também, com aquela roupa decotada” ou “vejam os inúmeros parceiros sexuais dessa moça” são alguns dos argumentos pinçados pelos defensores de quem agride as mulheres. Pode-se entender que Gastão estava em seu papel, por mais repulsivo que seja. O que não se compreende é como o juiz deixou tudo isso acontecer e ainda tomou uma decisão tão despropositada.
Por que estou tão indignado com essa bazófia? Sou o pai de uma menina de doze anos e quero que ela cresça em um mundo seguro e livre desse tipo de cafajestadas. Mas mesmo que não tivesse uma criança do sexo feminino, ficaria exasperado da mesma forma. Como disse Benjamin Franklin, “a verdadeira justiça será feita somente quando aqueles que não são afetados pelos crimes se sintam tão ultrajados como os que são”. É hora de toda a sociedade vestir esta carapuça e ficar ao lado das mulheres imoladas. Afinal, o conceito de “estupro culposo” é irmão gêmeo daquele que pregou a “legítima defesa da honra”, anos atrás. Os dois são univitelinos na impunidade, violência e desrespeito. Estamos em 2020. Vamos acabar com esse despautério.
O site Intercept, logo após a saída de Glenn Greenwald da sua equipe de profissionais, divulgou um grande furo jornalístico, que se tornou tema obrigatório de discussão – o vídeo que mostra o lamentável episódio no qual um advogado de defesa claramente desrespeita uma vítima de estupro. Essa moça, Mariana Ferrer, é levada às lágrimas por Gastão da Rosa Filho. O rábula tenta manchar a imagem da jovem para livrar a cara de seu cliente, o empresário André Aranha. Neste round, Rosa foi vencedor. Aranha foi inocentado na base de um tortuoso raciocínio que leva a uma tese esdrúxula, que ficou conhecida como “estupro culposo”. Segundo o magistrado deste caso, como a vítima não estava em suas plenas condições psicológicas, o acusado não teria como saber se haveria ou não consentimento para se consumar uma relação sexual. Esta tese só perde em estultice para a que atenuou, em 1977, a sentença do assassino da socialite Ângela Diniz, Doca Street: legítima defesa da honra.
Ora, se a mulher está sem condições para dizer “sim” ou “não” é sinal de que um ato sexual não deve ser cometido. Qualquer pessoa limítrofe consegue compreender algo do gênero – menos o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. Como a lei não prevê a existência de um estupro culposo, o réu foi absolvido por falta de provas. Mas há um detalhe: o código penal prevê a condenação por estupro de vulnerável – e Mariana, no momento da violação, estava exatamente em estado de vulnerabilidade.
Do mesmo jeito que a impunidade de Doca Street foi a porta aberta através da qual outros crimes passionais contra mulheres fossem cometidos, este é um caso que pode servir de exemplo para outras violências. Se a segunda instância não condenar Aranha, inúmeras jovens estarão à mercê de violentadores. É só jogar um comprimido dissolvido no copo de uma menina, esperar que ela perca os sentidos e afirmar ao juiz, depois, que houve um estupro culposo. Um verdadeiro absurdo.
A tática do advogado, que já defendeu figuras como Olavo de Carvalho e Sara Winter, foi a de mostrar que a vítima era uma mulher provocante, brandindo fotos que julgava indecentes (a moça estava totalmente vestida nos retratos, diga-se). Se estivéssemos em um filme americano, este seria o momento em que ouviríamos o grito de “protesto!” vindo do outro lado da banca. Mas, nada aconteceu. O Ministério Público declarou nos jornais de hoje que as imagens divulgadas foram editadas e não correspondem à realidade. Pode ser. Contudo, a deselegância de Rosa é 100% real, assim como a sentença abominável.
Vamos dizer que a conduta da vítima fosse duvidosa. E daí? Não se deve avançar em uma moça que está praticamente desmaiada, essa é uma regra básica do comportamento masculino civilizado. Mas como a garota poderia ser promíscua, como sugeriu o defensor do réu, se na época da agressão tinha 21 anos e era virgem, como foi comprovado pelos exames de corpo pericial?
O vídeo postado pelo Intercept causa náuseas ao mostrar a torpeza com a qual Gastão Rosa trata uma vítima de violência sexual. “Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”, fustiga o advogado. “Manipular”? Como assim? A polícia forense atestou a virgindade da moça. Desde quando alguém manipula os demais apenas por falar a verdade?
Não é de se espantar que mulheres tenham receio de acusar abusadores sexuais. A técnica sórdida usada por Gastão é frequente nos tribunais brasileiros e estrangeiros. “Ela bebeu demais”, “também, com aquela roupa decotada” ou “vejam os inúmeros parceiros sexuais dessa moça” são alguns dos argumentos pinçados pelos defensores de quem agride as mulheres. Pode-se entender que Gastão estava em seu papel, por mais repulsivo que seja. O que não se compreende é como o juiz deixou tudo isso acontecer e ainda tomou uma decisão tão despropositada.
Por que estou tão indignado com essa bazófia? Sou o pai de uma menina de doze anos e quero que ela cresça em um mundo seguro e livre desse tipo de cafajestadas. Mas mesmo que não tivesse uma criança do sexo feminino, ficaria exasperado da mesma forma. Como disse Benjamin Franklin, “a verdadeira justiça será feita somente quando aqueles que não são afetados pelos crimes se sintam tão ultrajados como os que são”. É hora de toda a sociedade vestir esta carapuça e ficar ao lado das mulheres imoladas. Afinal, o conceito de “estupro culposo” é irmão gêmeo daquele que pregou a “legítima defesa da honra”, anos atrás. Os dois são univitelinos na impunidade, violência e desrespeito. Estamos em 2020. Vamos acabar com esse despautério.