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Opinião: Uma invasão que interessa a Putin, não à Rússia

O labirinto de Putin atravessa e se perde nos lugares mais sombrios do nacionalismo russo, onde a Ucrânia sequer tem permissão de existir separada da Rússia

Para o próprio regime de Putin, as sanções, no curto prazo, podem aumentar o seu poder e riqueza num contexto semelhante ao da Venezuela onde o desaparecimento de 70% do seu PIB não impediu a sua elite de enriquecer (Getty Images/Getty Images)
Para o próprio regime de Putin, as sanções, no curto prazo, podem aumentar o seu poder e riqueza num contexto semelhante ao da Venezuela onde o desaparecimento de 70% do seu PIB não impediu a sua elite de enriquecer (Getty Images/Getty Images)
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Diogo Castro e Silva

Publicado em 24 de fevereiro de 2022 às, 17h36.

Última atualização em 25 de fevereiro de 2022 às, 14h17.

Por: Diogo Castro e Silva

Faz dois, três anos que inúmeros textos são publicados sobre a nova guerra fria entre Estados Unidos e China com o próprio Biden sendo eleito com uma plataforma de política externa onde a rivalidade com a China era a prioridade número um.

Mas a história vivida tem o condão de criar a sua própria narrativa e eis que a antiga guerra fria irrompe do passado no epicentro dos grandes conflitos dos últimos 150 anos, a velha Europa, tendo como ator principal a Rússia, mas agora com um argumento de um conflito bem mais quente, numa operação militar na Europa sem paralelo desde a Segunda Guerra mundial.

Num século que mal começou mas já pleno de datas históricas, 11 de Setembro de 2001, 15 de Setembro de 2008 e 11 de Março de 2020, o dia 24 de Fevereiro de 2022 representa o maior desafio a toda a ordem internacional desde 1945, com um potencial de escalada ainda imprevisível e com consequências de grande magnitude, para o mundo em geral, mas também para o Brasil.

Uma das maiores confusões de muitos analistas é pressupor que o regime de Putin conduz esta crise para defender o interesse estratégico da Rússia.  Nesta ótica uma guerra, incluindo a invasão agora em curso da Ucrânia, não faz sentido. Para a Rússia esta guerra é um desastre estratégico. Se o objetivo era cindir a unidade da OTAN e a relação transatlântica, o resultado tem sido o inverso.

Se era coagir e influenciar a Ucrânia, o que temos é hoje o reforço da identidade ucraniana. Está ajudando a resolver conflitos internos na União Europeia, nomeadamente com a Polônia. Tornou a Rússia ainda mais dependente da China. Fez os Europeus, nomeadamente os alemães, repensarem  totalmente a relação com a Rússia. E poderia aqui continuar esta lista.

Se olharmos esta crise sob o ponto de vista dos interesses do regime Putin, a história é bem diferente e torna qualquer resolução diplomática bem mais difícil. Ao contrário dos tempos soviéticos onde o líder (após Stálin) enfrentava vários pesos e contrapesos dentro do regime, Putin hoje governa só. Parafraseando Garcia Marquez, é um déspota no seu labirinto. E o seu labirinto atravessa e se perde nos lugares mais sombrios do nacionalismo russo, onde a Ucrânia sequer tem legitimidade de existir separada da Rússia numa distorção de mais de mil anos de percurso histórico distinto daquele país.

O que ameaça o regime de Putin não é a potencial entrada na OTAN, que não recebe novos membros desde 2004, mas a ligação da Ucrânia com a União Europeia que, à semelhança do que aconteceu em outras regiões da Europa, é uma poderosa âncora de desenvolvimento econômico e político. Essa escolha da Ucrânia escancara aos olhos da população russa a renúncia de Putin ao desenvolvimento do país sendo que foi esta escolha que o conduziu ao poder e que o manteve extremamente popular até 2012.

O significado para a população Russa de um sucesso ucraniano não é o mesmo que, por exemplo, o sucesso da Geórgia que sofreu uma invasão russa em 2008 com contornos e razões similares à presente crise. Para os russos, o povo da Geórgia é constituído por gângsters que vendem bom vinho e boa comida. A Ucrânia é um caso bem diferente e um exemplo de grande impacto para a população russa.

Por outro lado, para o próprio regime de Putin, as sanções, no curto prazo, podem aumentar o seu poder e riqueza num contexto semelhante ao da Venezuela onde o desaparecimento de 70% do seu PIB não impediu a sua elite de enriquecer. Todo este contexto torna qualquer solução diplomática muito difícil senão impossível. É possível negociar questões de segurança e de interesse de Estado, mas muito mais difícil questões ligadas à sobrevivência percebida por si próprio de um regime.

Olhando para a frente, agora, a guerra vai se instalar durante várias semanas, senão meses. Mas independentemente de quais os cenários futuros da crise, o mundo mudou no dia 24 de Fevereiro e um regresso ao status quo anterior não é mais possível. A relação da Rússia com o resto do mundo se alterou de forma definitiva até que haja uma mudança de regime neste país.

O cenário mais grave que temos nas suas consequências é uma escalada do conflito para lá da Ucrânia. Na sequência da decisão de alargar a Guerra a todo o território ucraniano sob o pretexto absurdo de “desnazificação “ de um país liderado por um Presidente de religião judaica, Putin desencadeia um conflito de grandes consequências geopolíticas.

Mesmo na sequência de uma vitória militar provável face à disparidade de meios no conflito, uma guerra de guerrilha e subversão será inevitável, suportada pelo apoio, sobretudo, da Polônia mas também dos países Bálticos. Haverá igualmente uma enorme pressão de refugiados nas fronteiras da Europa, com algumas estimativas apontando para 5 milhões de ucranianos.

Confrontado com baixas e sem a capacidade de pacificar o território, a tentação política de Putin de culpar os países fronteiriços à Ucrânia, e estes sim membros da OTAN, de dar santuário a uma futura resistência ucraniana será enorme e com isso uma rota de colisão direta com a OTAN é perfeitamente possível. E aqui teremos dois resultados possíveis. Ou um cenário estilo Berlim 1961, com o início de uma nova cortina de ferro na Europa, ou mergulhamos diretamente num cenário semelhante à Crise dos Mísseis de Cuba com ramificações imprevisíveis.

Para entender a evolução futura, contudo, do conflito existem duas grandes incógnitas. A primeira é a China. Este é o único país que pode mudar o rumo agora traçado por Putin. Apesar de toda a aparência de unidade entre Putin e Xi Jinping nas últimas Olimpíadas, o conflito da Ucrânia coloca a China num dilema significativo. De um lado, o entendimento com a Rússia e o interesse em avançar no confronto com os EUA colocando a liderança deste último em causa.

É lógico que a China também observa com atenção a reação dos EUA de forma a tirar lições de uma eventual sua ação contra Taiwan no futuro. Por outro lado, a China é muito mais conservadora na sua agenda. O seu sucesso e integração econômica com o Mundo faz com que tenha muito mais a perder que a Rússia com o alargamento de um conflito.

Para além disso, Xi Jinping enfrenta uma ratificação da sua liderança no Outono e até lá, como é óbvio, acontecimentos inesperados não são bem vindos. A Ucrânia, para além disso, é um parceiro comercial importante da China e, mais importante que tudo, a integridade territorial é um princípio sacrossanto da  política externa chinesa há décadas e que sustenta a sua posição em relação ao tema de Taiwan. Se a integralidade territorial não fosse importante o que impediria este território de declarar independência?

Essa é a razão, aliás, pela qual até hoje a China nunca reconheceu a anexação da Crimeia pela Rússia.

Acompanhar como a China reage a esta crise é fundamental para o curso futuro dos acontecimentos sem falar que uma solução diplomática patrocinada pela China seria um enorme gol diplomático e poderia mudar de forma significativa a dinâmica existente das relações entre a China e a Europa e EUA. A segunda incógnita é o comportamento da opinião pública russa e a unidade no topo do regime na viagem escura e sombria para onde Putin decidiu embarcar o seu país. A escalada retórica de Putin é proporcional às dificuldades encontradas para apresentar um caso convincente à opinião pública russa e é imprevisível como o aumento dos custos desta aventura vai ser aceito pela população, sem falar do aumento inevitável da repressão dentro da Rússia que vai acontecer em paralelo com o desencadear do conflito.

Os mercados têm muitas dificuldades em prever eventos extremos. Na véspera da Primeira Guerra Mundial os mercados nada antecipavam, por exemplo, sobre o conflito, mas é claro agora que vamos ter consequências econômicas potencialmente severas não só na economia russa mas também na economia europeia pois muitas das sanções apresentam custos para quem as impõe. Emergindo de todas as dificuldades da pandemia, a economia mundial pode sofrer não só um choque no setor de energia, dada a importância da Rússia no setor, mas também no mercado agrícola sem falar de ataques cibernéticos em setores críticos no mundo Ocidental.

A Ucrânia, por exemplo, é responsável por 12% das exportações mundiais de trigo e muita desta produção está concentrada no Leste do país. Para o Brasil, para além do aumento do risco inflacionário por via do aumento do preço do Petróleo, pode haver consequências importantes para o setor do agro dado que a Rússia é um importante fornecedor de insumos agrícolas críticos para a produção do setor sem falar das repercussões negativas sobre a economia mundial.

Temo que esta crise esteja apenas no início. O historiador Thomas Snyder num brilhante livro de história classificou as terras com epicentro na Ucrânia durante a primeira metade do século XX como Terras de Sangue. O regresso desta nova velha guerra fria ameaça ser um triste regresso a este passado.