Campanha de vacinação contra covid-19 (Stephane Mahe/Reuters)
Agência O Globo
Publicado em 17 de fevereiro de 2022 às 08h17.
Última atualização em 17 de fevereiro de 2022 às 08h24.
A previsão do tempo hoje em São Felix do Xingu, no Pará, é de tempestade. Nada fora do padrão para a região. Anomalia é outro tipo de tempestade estacionada lá desde o ano passado: o da baixa cobertura vacinal, retrato da desigualdade no acesso à imunização contra a covid-19 no Brasil.
O município é o com menor percentual de população vacinada do Brasil, 15,5% com primeira dose, situação que se mantém desde novembro.
É um microcosmo da desigualdade vacinal, cujo epicentro é a Amazônia Legal. Num momento em que estados do Centro-Sul avançam na vacinação de crianças e no reforço e já se fala até de quarta dose, estão na Amazônia Legal nove dos dez municípios com menor percentual de aplicação da primeira dose do Brasil, mostra um levantamento feito pelo Globo.
O levantamento se baseou em informações dos 5.570 municípios mais o Distrito Federal compiladas pelo Observatório da Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 6 de fevereiro, a partir da base de dados do Ministério da Saúde.
A tempestade perfeita é gerada pela combinação de falta de planejamento nacional para distribuição e operacionalização da aplicação das vacinas em regiões de população dispersa e acesso historicamente difícil, falta de campanhas de informação e negacionismo.
O resultado é a criação de desertos vacinais, onde a população desprotegida alimenta bolsões para perpetuação da pandemia, surtos e abre caminho para o surgimento de novas variantes do coronavírus.
O denominador comum de todos os municípios com baixa vacinação é o baixo IDH, além dos fatores já mencionados.
— São lugares quase sempre remotos, mas a covid-19 chegou em todos eles. Então, a vacina tem que chegar. Cada município tem suas peculiaridades, em alguns as falhas operacionais são mais importantes, em outros o negacionismo antivacina pesa mais — afirma Diego Xavier, pesquisador do Observatório Covid-19/Fiocruz.
Numa Nota Técnica de dezembro do Observatório da Covid-19/Fiocruz, portanto, antes do apagão de dados do Ministério da Saúde, a Região Norte já figurava como a menos vacinada do Brasil. A nota mostrava que só 16% dos municípios brasileiros tinham vacinação com esquema completo acima de 80%. No Sul do país, 30% dos municípios apresentam mais de 80% da população com esquema de vacinação completo, na região Sudeste 27,2%, no Centro-Oeste 11,8%, no Nordeste 2,7% dos municípios e na Região Norte apenas 1,1%.
Diego Xavier diz que desde então a situação pouco mudou e a tendência continua a mesma. São Paulo tem o maior percentual de população vacinada, 85% dos habitantes receberam a primeira dose, 80% a segunda e 35% foram imunizados com a terceira dose, segundo boletim da Fiocruz. Já o Amapá está no fim da fila. Tem o menor percentual de vacinação com a primeira dose (58,9%), só 42,9% com segunda dose e pífios 5,1%, com a terceira.
Xavier acrescenta que dezembro de 2021 e janeiro de 2022 foram os meses com a menor quantidade de doses enviadas pelo Ministério da Saúde, superando apenas os dois primeiros meses de imunização desde o início da campanha.
— Temos padrões de vacinação da Europa e da África dentro do Brasil — diz Xavier.
A epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019), considera preponderantes para a criação de desertos vacinais a falta de planejamento do Ministério da Saúde, que não organizou a distribuição de imunizantes de acordo com as necessidades regionais, a falta de informação qualificada oficial para a população e o negacionismo do governo federal, que amplificou o movimento antivacina.
— A falta de comunicação oficial deixou muita gente apavorada, com um medo infundado que jamais existiu. E, pior, o Ministério da Saúde, ao abrir as portas para o movimento antivacina, empoderou o discurso negacionista e enfraqueceu a proteção da população contra a covid-19. Isso é um estrago de impacto de longo prazo para a saúde pública. Não há boletins oficiais, não há meta. Ao contrário, há desinformação oficial — salienta Domingues.
São Félix do Xingu costuma ser mais conhecida pela combinação explosiva de pecuária e desmatamento. Tem o maior rebanho bovino do país, estimado em 2,4 milhões de cabeças. E, não por coincidência, é o município brasileiro que mais emite gases do efeito estufa, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima.
Em sua maior parte, emissões decorrentes do desmatamento e da pecuária, espalhados por um território de 84.212,903 Km2, — é o sexto maior município do Brasil em área. Mas seus 135.732 habitantes estão dispersos numa das menores densidades demográficas do país, de apenas 1,08 hab/km2. Dois terços deles são indígenas, que vivem em aldeias onde a covid-19 grassa e a vacina não alcança.
— Infelizmente, é uma situação dramática. O gado está vacinado, protegido contra a febre aftosa. A população humana, não. É o retrato perfeito da desigualdade. A população indígena, quilombola e ribeirinha era grupo prioritário, mas isso nunca passou de ficção. Não houve planejamento e empenho das autoridades, principalmente federais. Ao contrário. Primeira dose na casa dos 15% é o atestado do descaso com a saúde da população — destaca a sanitarista Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Evelin Plácido, coordenadora da área técnica de imunização do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e presidente da regional São Paulo da Sociedade Brasileira de Imunização, afirma que aldeias inteiras e profissionais de saúde estão com covid-19, o que dificulta ainda mais uma situação que já era grave.
Plácido enfatiza que não houve planejamento na distribuição e se enviou em barcos sem refrigeração a vacina da Pfizer que precisa de uma cadeia fria delicada. Foram distribuídos refrigeradores solares pelo território, mas os barcos, muitas vezes, não têm nem geladeira de isopor.
— A vacina precisa viajar por até 15 dias em barcos precários, não há equipes suficientes, os poucos profissionais que estão lá estão sobrecarregados e quando chegam às aldeias muitas vezes ainda enfrentam o negacionismo de pastores de algumas denominações neopentecostais. Dizem que ‘é a Besta que está na vacina’ — frisa Plácido.
Ela lembra que existia algum negacionismo em 2009, na ocasião da vacinação contra a gripe H1N1, mas ela foi vencida com o apoio das autoridades de saúde. Hoje esse apoio desapareceu. Na época, pastores diziam aos indígenas que eles virariam porcos se tomassem a vacina. Com a covid-19, o bicho, a exemplo do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro, mudou para jacaré.
O negacionismo evangélico ganhou força ao passo que a assistência à saúde de indígenas e ribeirinhos diminuiu.
— Oferecer toda a infraestrutura fluvial, aérea e terrestre coube aos municípios, que já não a tinham antes e agora então têm menos ainda. A covid-19 escancarou e agravou um problema que já existia — diz Plácido.
Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário executivo do Conselho Missionário Indígena (Cimi), observa que há muitas aldeias não vacinadas, não apenas na região do Araguaia-Xingu, mas em todo o país. Segundo ele, a situação só no está pior porque agentes de saúde indígena têm se desdobrado para ir às aldeias esclarecer os povos indígenas e vaciná-los.
— Temos um problema muito grave que é o risco de a covid-19 dizimar povos isolados. Eles podem desaparecer com um surto e nada é feito para evitar — adverte Oliveira.
Há ainda a questão de infraestrutura para o lançamento de dados, acrescenta Xavier. Muitos municípios não lançam adequadamente as informações nas bases de dados do SUS.
— Porém, todas as questões têm solução. Mas não se vê movimentação para isso — Xavier.
Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde de São Félix do Xingu não respondeu aos pedidos de entrevista do Globo.