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Mulheres Indomáveis: quebrar ou substituir os padrões?

O tema de Anne Helen Peterson são celebridades mulheres que transgridem as normas da boa conduta esperadas delas

SERENA WILLIAMS: tenista é uma das inspirações para livro que busca exaltar mulheres fora dos padrões, mas que ficaram conhecidas por atos extraordinários (Cameron Spencer/Getty Images)

SERENA WILLIAMS: tenista é uma das inspirações para livro que busca exaltar mulheres fora dos padrões, mas que ficaram conhecidas por atos extraordinários (Cameron Spencer/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 26 de agosto de 2017 às 07h17.

Última atualização em 26 de agosto de 2017 às 10h09.

Too Fat, Too Slutty, Too Loud: The Rise and Reign of the Unruly Woman (“Muito Gorda, Muito Vadia, Muito Expansiva: a Ascensão e o Reino da Mulher Indomável”, em tradução livre

Autor: Anne Helen Peterson

Editora: Penguim Random House

304 páginas

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Nossa cultura traz, como ideais, padrões diferentes para homens e mulheres. O homem deve ser forte e assertivo. A mulher, casta e dócil. Isso causa inúmeros sofrimentos a todos os indivíduos que falham em se adequar. Alguns, contudo, ousam quebrar as normas e manifestar sua própria individualidade sem medo da reação social. Para as mulheres, que estão submetidas a um policiamento maior de sua conduta — e a reações mais raivosas —, este ato de rebeldia pode ser especialmente difícil.

E é por isso que faz sentido celebrá-lo, como faz Anne Helen Peterson em Too Fat, Too Slutty, Too Loud: The Rise and Reign of the Unruly Woman (Muito Gorda, Muito Vadia, Muito Expansiva: a Ascenção e o Reino da Mulher Indomável, em tradução livre). O tema de Peterson — que é PhD em estudos de mídia e escreve para o site Buzzfeed — são celebridades mulheres que transgridem as normas da boa conduta esperadas delas. Em 10 ensaios que podem ser lidos separadamente, cada um sobre uma celebridade (que vão da tenista Serena Williams à rapper Nicki Minaj à política Hillary Clinton), ela mostra como a mulher em questão soube lidar com a reação negativa da imprensa e do público e, ainda assim, brilhar. Elas se opõem a celebridades perfeitinhas, às “lifestyle supermoms”, como Jessica Alba, Gwynneth Paltrow e Reese Witherspoon. Belas, mães, bem-sucedidas.

Em quase todos os ensaios, a mulher em questão tem um talento ou desempenho relevante que justifica sua fama. Serena Williams é uma lenda do tênis; Melissa McCarthy é uma atriz hilária; Jennifer Weiner, uma escritora de sucesso. Mas há exceções, como Kim Kardashian, cuja única notoriedade deve-se, além de ser bonita e rica (como tantas outras não-famosas), à sua conduta tida por condenável pelos padrões sociais estabelecidos.

Para a autora, as celebridades representam muito da ideologia dominante na sociedade. Tanto pelos valores que trazem quanto por aqueles que violam. Nenhuma das citadas é uma subversiva completa. Todas têm que se pautar por alguns valores vigentes, ou seriam rechaçadas pelo público. Algumas, como a transexual Caytlin Jenner, ainda cometem o pecado de defender posições políticas de direita.

A premissa implícita é: tudo que se adeque aos padrões vigentes ou defenda posições não-progressistas é ruim. Faltou algum tipo de tentativa de entender por que é que toda sociedade, sem exceção, impõe algum tipo de padrão de conduta. Mais Freud e menos progressismo fariam bem ao livro, que não raro cede a uma visão quase maniqueísta.

Há, sem dúvida, um hiato entre o que gostaríamos de ser espontaneamente e o que a sociedade nos dá como desejável ou mesmo obrigatório. Não é preciso adotar uma posição moralista, para um lado ou para outro, para analisar isso e explorar as tensões que isso provoca em figuras públicas. Tornando a coisa ainda mais complexa, vale lembrar que é também da sociedade que tiramos os gostos e desejos “espontâneos”, “verdadeiros”, de nossa vida mais íntima.

Cabe ainda perguntar o quanto disso tudo está mesmo nos fatos e nas pessoas que são o objeto de análise, e quanto são interpretações que existem apenas nas cabeças de intelectuais e acadêmicos? Já na introdução, Petersen nos informa que o que a fez decidir publicar o livro foi a vitória de Trump (olha a cruzada moral aí…). Os Estados Unidos revelaram ser um país que “odeia as mulheres”. De onde ela tirou que a vitória de Trump foi devida aos padrões femininos e não a tantas outras variáveis?

Do mesmo modo, as interpretações do livro parecem um pouco arbitrárias. Até que ponto Kim Kardashian está indo contra modelos impostos pelo machismo, e não apenas quebrando regras e fazendo barulho porque sabe que, assim, gera mais atenção? Essa é, no fim das contas, a grande pergunta que o livro não faz: será que essas celebridades que “quebram” padrões (e que em alguns casos, como o de Kim Kardashian, são famosas por isso e apenas por isso) estão ajudando a cultura a se tornar mais livre para as mulheres? O jogo da fama delas depende da manutenção desses padrões. O espetáculo midiático que sua conduta cria é uma forma de ganhar mais dinheiro e fama. Esse feminismo tão saturado de cultura pop americana fica parecendo mais uma jogada de marketing do que uma ferramenta de transformação real.

Não vivemos no mundo do puritanismo cristão. Ser chocante, querer aparecer acima de tudo, são condutas plenamente aceitáveis; desde que se tenha sucesso. O pecado é tentar e falhar. Quebrar padrões pega muito bem; não é à toa que Petersen escreve no Buzzfeed. Isso alimenta o ego de celebridades. Tratar como admirável a conduta egocêntrica e vaidosa dos famosos apenas alimenta esse lado de nossa cultura, e não me parece que ele esteja nos levando a um mundo sonhado de igualdade plena e ausência de padrões. Talvez os novos padrões sejam ainda mais cruéis que os antigos, mas não encontraremos esse tipo de reflexão aqui.

Por fim, saindo do mundo das celebridades da cultura pop massificada e chegando à cultura letrada, observo o fenômeno inverso: no mundo das letras, é o feminismo que dá as cartas e impõe a censura às mentes que discordam. A própria ideia de que padrões diferentes para os gêneros não sejam um ultraje moral está proscrita. Toda semana fabrica-se alguma nova “polêmica” que consiste apenas em um comentário, opinião ou mesmo piada que se desvia das premissas do discurso oficial, para a ruína do emissor. Ser politicamente incorreto vira um bom negócio, um jeito de ser transgressor, de aparecer como uma mente audaz, mesmo que o próprio discurso seja boçal.

Se você simplesmente adora cultura pop americana, Too Fat, Too Slutty, Too Loud é um prato cheio. Não é o meu caso, mas mesmo assim a leitura vale pelas boas discussões sobre nossos valores sociais e sobre como tratamos as celebridades, pessoas que, na verdade, desconhecemos por completo e em cujas imagens construídas pela mídia jogamos tantas de nossas aspirações e rejeições. Dá também para entender melhor como funciona a cabeça do feminismo popular americano, para quem forças machistas controladoras explicam desde a fofoca sobre o vestido de Kim Kardashian até a derrota de Hillary Clinton.

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