Mudanças no Carf geram dúvidas de contribuintes (André Corrêa/Agência Senado)
Bússola
Publicado em 7 de fevereiro de 2023 às 21h00.
Última atualização em 8 de fevereiro de 2023 às 09h08.
Por Bússola
As mais recentes mudanças promovidas pelo Ministério da Fazenda no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) geram dúvidas e reações de contribuintes. Tanto que empresários levaram ao ministro Fernando Haddad (PT) uma proposta para alterar o voto de qualidade, restituído via Medida Provisória pela atual gestão.
A Bússola ouviu o mestre em direito tributário André Simão, sócio do escritório Leal Cotrim Advogados, sobre o tema. A seguir, ele analisa os principais pontos do imbróglio e suas possíveis consequências.
Voto de qualidade
“Há um contexto para essas mudanças, que têm a ver, inicialmente, com um uso exacerbado do voto de qualidade no período pós-Operação Zelotes. Segundo levantamento do Sindifisco junto ao Carf, entre 2017 e início de 2020, R$ 114 bilhões foram decididos por voto de qualidade, sendo R$ 110 bilhões a favor da Fazenda. O Carf passou a manter as multas qualificadas de 150% em casos de divergência interpretativa sobre planejamento tributário, sem que houvesse sonegação, fraude ou conluio, mesmo quando metade da turma julgadora entendia que o contribuinte agiu de forma razoável, amparado pela lei.
Em reação, veio a mudança do critério de desempate em favor do contribuinte, com a inserção do art. 19-E à Lei 10.522/2002, pela Lei 13.988/2020, que tratava de transação tributária. Essa mudança surgiu bem no início da pandemia, causando surpresa pela ausência de debate prévio. Alguns elogiaram a medida, que talvez tenha como principal virtude fomentar, agora, o debate para aprimorar o modelo. Outros reagiram, inclusive com a sinalização pela Fazenda de que poderia passar a judicializar algumas discussões quando perdesse por esse critério.
No sistema atual, esse questionamento pela Fazenda, em Juízo, de um julgamento do Carf é um grande contrassenso, porque significa que a União buscaria o Judiciário para anular uma decisão da própria União.
Agora, com a MP 1.160/2023, volta-se à regra anterior, num movimento ainda pendular, que merece ser aprimorado com soluções que tragam um equilíbrio melhor.”
Alteração via MP e insegurança jurídica
“Ao editar a MP, a intenção da Receita Federal foi estancar, de imediato, a possibilidade da anulação de autos de infração em que se discutem alguns temas com divergência interpretativa relevante. Contudo, foi açodado aproveitar a MP, antes de sua conversão em lei, para apressar a inclusão em pauta de casos polêmicos, antes represados, de valor elevadíssimo, cujo resultado passaria a favorecer a Fazenda com a alteração da regra de desempate.
Se a MP não for convertida em lei, os julgamentos ocorridos sob sua vigência e resolvidos pelo voto de qualidade precisarão ser anulados, o que pode ser regulamentado pelo próprio Congresso, por meio de Decreto Legislativo, ou então serão ajuizadas ações nesse sentido. E a sua aprovação ou não pelo Congresso depende de articulações políticas que estão se desenvolvendo.
Está em curso também uma possível alteração no modelo pelo Ministério da Fazenda, a partir de proposta de empresas, para manter o voto de qualidade, mas permitindo que o contribuinte, vencido por esse critério, possa quitar o débito sem multa e juros em determinado curto prazo, ou mantenha a suspensão de exigibilidade até a sentença judicial.
No caso do pagamento, o litígio seria encerrado e, para a Fazenda, isso projetaria um aumento de arrecadação, nessa fase, de 5% para 30% (e eventualmente uma arrecadação maior que a inicialmente estimada pelo Ministério da Fazenda). Por outro lado, se o contribuinte optar por seguir a discussão em âmbito judicial, ficaria afastada a multa, e o débito poderia ter exigibilidade suspensa até a sentença em primeira instância, sem precisar apresentar garantias onerosas (o juiz, assim, acabaria desempatando o julgamento final do Carf).
Essa parece ser uma boa solução, fruto do necessário diálogo entre Fazenda e contribuintes, e que pode se materializar muito em breve.”
Voto de qualidade e arrecadação
“A missão do Carf não é arrecadar, mas permitir um julgamento técnico, que assegura o contraditório, e assim traz maior segurança jurídica para todos. O anúncio da mudança como algo vinculado a uma meta de arrecadação soa bastante inadequado, até porque bastaria dizer que a nova regra condiz com a forma como é estruturado o processo administrativo fiscal, para a revisão de legalidade do lançamento tributário, podendo o contribuinte recorrer ao Judiciário para dar a palavra final.
E não foi a mudança da regra de desempate que gerou um aumento do estoque de processos, mas a própria gestão do Carf, que ficou paralisado pela pandemia, por movimentos dos representantes da Fazenda (discussão de bônus para auditores) e, também, pela aparente tentativa de segurar o julgamento de algumas matérias, na expectativa de se reverter o fim do voto de qualidade. Além disso, a arrecadação não está diretamente associada ao julgamento final pelo Carf, considerando que o contribuinte tenderá a seguir discutindo o débito pela via judicial.”
Celeridade nos julgamentos e valor de alçada
“A julgar pelo tempo que demora somente para que um recurso seja distribuído a um relator (às vezes, dois anos), a promessa de zerar o estoque de processos represados soa bastante otimista. É claro que os contribuintes esperam um desfecho de seus processos em tempo mais curto. Contudo, a pressa não pode se dar em prejuízo da qualidade da análise técnica.
Quanto ao aumento do valor de alçada para mil salários-mínimos, de fato o valor anterior estava defasado, mas a medida exclui o acesso a uma segunda instância administrativa para muitas pequenas empresas e pessoas físicas. O problema é que, em primeira instância administrativa (DRJ), as sessões não são públicas, não há possibilidade de sustentação oral ou apresentação de memoriais, e os julgamentos tendem a confirmar as autuações, salvo hipóteses de correção de erros mais evidentes de critérios de cálculo adotados.
Então, cabe aperfeiçoar o modelo, seja na DRJ, ou ainda assegurando uma revisão em segunda instância em modelo simplificado, com quórum reduzido em relação ao Carf. Eliminar a instância revisora para esses casos serve para constranger o contribuinte a pagar logo (se puder), mesmo que tenha bons argumentos de defesa.”
Paridade x Celeridade
“Nada leva a crer que conselheiros da Fazenda (auditores-fiscais) sejam mais céleres ou menos custosos para os cofres públicos que os conselheiros indicados como representantes dos contribuintes. Muito pelo contrário. Se isso fosse verdade, os julgamentos pela DRJ (em que atuam somente auditores fiscais) não demorariam anos.
Na verdade, a composição paritária, especializada, com tributaristas e julgamentos públicos, faz com que o Carf seja o órgão julgador no país que profere julgamentos técnicos de melhor qualidade em matéria tributária.
Em relação à credibilidade, o argumento deve ser rechaçado. Cabe lembrar que os nomes indicados são de profissionais altamente qualificados, todos especialistas em tributação, que passam também pelo crivo da Fazenda. O método de indicação dos conselheiros, porém, pode ser aprimorado, para dar maior transparência e publicidade. Trata-se de uma carreira que deveria ser melhor regulamentada e valorizada.”
Composição via concurso público
“É um modelo que merece ser pensado, até por favorecer um acesso mais democrático a uma função pública. Nesse caso, é importante que seja uma carreira apartada da fiscalização, que não haja bônus condicionados ao teor dos julgamentos proferidos e haja garantia de imparcialidade como ocorre com juízes. O Carf não é o único tribunal no país composto por julgadores escolhidos por processos outros, que não o do concurso público. O fundamental, porém, é garantir que continue sendo um órgão técnico, altamente especializado, independente, que traz maior qualidade e segurança.”
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