A polarização política causa inquietação na população (Paulo Whitaker/Reuters)
Bússola
Publicado em 30 de dezembro de 2022 às 16h40.
Última atualização em 30 de dezembro de 2022 às 17h14.
Por Flávio de Haro Sanches e Matheus Augusto Curioni*
O momento atual causa inquietude nos cidadãos brasileiros. Não apenas pela polarização que marcou as eleições que se passaram. Já havia uma crescente sensação de que algo não está indo como deveria em nosso ambiente institucional. Mas o que estaria fora do lugar? Em geral, segundo visões múltiplas e até opostas, parece que a democracia seria o foco da patologia. Mas, qual seria exatamente o problema? O que precisamente nos levou ao atual estado de coisas?
Observando em perspectiva e sem partidarismo os últimos anos, em um recorte que vai desde o início da pandemia, passando pelas eleições até o momento atual, o diagnóstico aponta para uma grave disfunção daquilo que a Constituição da República chama de “harmonia entre os poderes” da República. Poderes esses que são oficialmente Executivo, Legislativo e Judiciário, mas aos quais deve-se acrescentar a Mídia. O texto de nossa Constituição prevê apenas os três primeiros, mas é inegável o peso brutal que a mídia exerce ao assimilar, fiscalizar, expor, e, sim, como sempre foi, enviesar os fatos perante o detentor do poder originário — nós, o povo. A Mídia é em toda democracia consolidada essencial para que o povo possa reconhecer como tem se dado, na prática e no cotidiano, sua representação nos Poderes oficiais.
O momento torna valiosíssima a lição do professor Silas Rodrigues Gonçalves, querido mestre da Universidade Presbiteriana Mackenzie que nos deixou em 2006. De forma simples, Silas explicava que o Legislativo produz as leis, o Executivo governa e cria políticas públicas supostamente dentro do que prevê as leis, ao passo que o Judiciário é responsável por aplicar a lei, avaliando seu cumprimento ou não — razão pela qual o Judiciário é chamado de “terceiro Poder”.
Desde a promulgação da atual Constituição sempre houve alguma discussão a respeito de qual seria o melhor sistema de governo para o Brasil. Alguns entendiam e ainda consideram que o parlamentarismo seria o mais adequado. Esse debate ficou superado com o plebiscito realizado em 1993, cujo resultado foi a escolha do sistema presidencialista em vigor. Com o passar do tempo, sucessivas turbulências políticas tencionaram as relações entre Poder Executivo e Legislativo. Na história recente, ainda estão na retina momentos em que o Legislativo, na pessoa dos presidentes da Câmara e/ou Senado, ignorou, ou ao menos tornou cinzenta, a separação entre esses dois Poderes.
Em sua raia, o Judiciário foi chamado constantemente — com destaque que considero exagerado para os Tribunais Superiores, sobretudo para o STF — a fazer aplicar a Constituição Federal. Para falarmos especificamente do STF, a Corte tem se desdobrado entre, de um lado, uma atuação como Corte Constitucional tout court (atuando, por exemplo, na mediação do processo de impeachment em 2016) e, de outro lado e para desgosto de (pelo menos) alguns ministros, operando como tribunal criminal (por exemplo, conduzindo casos com o do Mensalão e o do Petrolão, isso em meio a milhares de outros casos penais “menores” e anônimos).
Mas, então, de onde vem este forte sentimento geral de que algo está “desencaixado”?
Sabemos que em momentos de turbulência surgem exceções, até previstas na Constituição e nas leis, em que os Poderes exercem funções atípicas. Ocorre que, aparentemente — e aí aponto uma patologia — a exceção tem virado regra: a atuação atípica tem mostrado ímpetos de perpetuidade e de “normalização”. É como se algumas molas do aparelho institucional estivessem gastas e, frouxas, não mais voltassem a seu formato de origem, ao passo que outras, que deveriam ser mais frouxas e de uso excepcional, adquiriram uma hipertensão perigosamente duradoura. Embora não seja o único a invadir competências, há forte sensação de que o Judiciário está usurpando funções de maneira cada vez mais perene e escancarada.
Há, de fato, uma patologia institucional que corrói isso que se chama de “convivência harmônica entre os Poderes”. Relegando análises mais profundas para outra oportunidade, a pergunta crucial e urgente é: qual é o remédio? Certamente um dos melhores seria um competente e honroso desempenho do quarto Poder, a Mídia.
Mídia é o “meio”, é o que “permeia”, sendo assim essencial que exista de maneira fluida, transparente e que exerça suas funções sobre todas as partes e todos os lados do convívio institucional. Não é mais possível identificar a Mídia com jornalismo, dada a atual multiplicidade de plataformas, origens e vozes. Essa multiplicidade dá voz ao povo e reverbera seus anseios. O esvaziamento, turvação ou censura da Mídia em qualquer das partes ou lados do ambiente público atenta contra a democracia, dando espaço para desinformações e sistemática invasão de competência entre os Poderes. A falta da devida divulgação elimina a pressão que forçaria os Poderes oficiais a um melhor funcionamento.
A famosa lição de Montesquieu revela que, quem quer que tenha poder, é tentado a dele abusar; por isso, é necessário que o poder freie o poder. Os responsáveis pelos abusos que caracterizam o panorama institucional brasileiro atual somente serão constrangidos aos devidos recuos se devidamente escrutinados pela Mídia em seus mais diversos canais, fontes, matizes e vieses. Sem essa plenitude, corremos o risco de normalizar o anormal até perder de vista as causas da patologia.
*Flávio de Haro Sanches e Matheus Augusto Curioni são, respectivamente, sócio e consultor da área tributária do CSMV Advogados.
Siga a Bússola nas redes: Instagram | Linkedin | Twitter | Facebook | Youtube
Veja também
Análise do Alon: Lula, o superministro da Economia
Análise do Alon: O “orçamento secreto” no pano verde
Marcia Byrne: período eleitoral registrou aumento de anúncios fraudulentos