Redes sociais estão se tornando uma terra sem lei (NurPhoto/Getty Images)
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Publicado em 7 de março de 2023 às 16h00.
No final dos anos 1960, pesquisadores norte-americanos conduziram um interessante experimento social.
Abandonaram dois carros idênticos em bairros distintos – um em uma zona com alta taxa de criminalidade e o outro em uma região notória por sua segurança – e passaram a monitorá-los.
Não demorou muito para que o primeiro veículo fosse atacado. Pneus, lanternas, bancos, rádios foram roubados e o que não puderam levar, destruíram.
O segundo permaneceu ileso. Até que, depois de alguns dias, os pesquisadores decidiram incluir um novo elemento à experiência e quebraram uma das janelas do automóvel.
Pronto. Foi o que bastou para que o carro fosse vandalizado e tivesse o mesmo destino que o seu par.
Mas o que deflagrou a reviravolta?
A resposta está no vidro quebrado.
Segundo a Teoria das Janelas Quebradas, uma janela avariada que não é logo consertada transmite uma mensagem de descaso, abandono. Dá a entender que no local não há regras, e a tendência é que em pouco tempo outros vidros – e partes da estrutura – sejam danificados.
Em contrapartida, uma janela consertada rapidamente mostrará que no ambiente há leis e vigilância, o que desencorajará comportamentos criminosos.
Por isso, o ideal, em quaisquer ambientes e circunstâncias, é consertar rapidamente a avaria, antes que seja tarde demais para evitar novos ataques.
É o que observamos nas redes sociais.
Nos últimos anos, sob a guarida de um deturpado conceito de liberdade de expressão e reforçado por uma lucrativa e permissiva autorregulação, não faltaram pedras nem vidraças para transformá-las em um latifúndio de janelas quebradas.
Com a leniência das esferas pública e privada, as mídias sociais se converteram em terra difícil de entrar sem se ferir, repleto de teorias da conspiração, notícias falsas, racismo, misoginia, xenofobia e um repertório eclético de narrativas de ódio.
Houve, é verdade, alguns movimentos pontuais para tentar frear este ímpeto destrutivo e promover um certo equilíbrio entre forças, como a remoção de conteúdo notoriamente falso ou criminoso ou a suspensão de alguns perfis, por ordem judicial.
Também ganharam corpo as políticas de cancelamento, uma espécie de Lei de Talião online que visava revidar ataques e fazer justiça com os próprios dedos, linchando virtualmente pessoas com postura considerada tóxica.
Contudo, medidas reativas nem sempre geram resultados positivos e nada disso funcionou.
Basta ver que a retirada de conteúdo, a suspensão de contas e a política do cancelamento não foram capazes de impedir, por exemplo, a maciça onda de desinformação sobre a Covid-19 e a articulação do 8 de janeiro, um movimento orquestrado às claras pelas redes sociais, que objetivava danificar muito mais do que as janelas dos Três Poderes.
Preocupadas com a ascensão deste fenômeno global, entidades sociais, governos, cientistas, comunicadores e representantes do mercado de tecnologia têm se reunido nos últimos meses para juntar os cacos e blindar os vidros que restam.
Em fevereiro, a Unesco realizou em Paris a conferência "Internet for Trust", que reuniu governos, órgãos regulatórios, empresas digitais, universidades e sociedade civil para discutir a disseminação da desinformação, discurso de ódio e teorias da conspiração.
No Brasil, o Ministério dos Direitos Humanos criou um grupo de trabalho para elaborar estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo, além de propor políticas públicas em direitos humanos sobre o tema.
Ao mesmo tempo, o Projeto de Lei 2630, conhecido como "PL das Fake News", tramita no Congresso. O projeto prevê a responsabilização das plataformas por conteúdos falsos, a criação de um órgão regulador, a proibição dos disparos em massa e uma injustificável blindagem parlamentar para o uso das redes, entre outros pontos controversos e ainda sem consenso.
Por mais polêmicas que sejam, as iniciativas em prol da civilidade nas redes são válidas e devem ser debatidas, com a devida serenidade e cuidado na dosagem, para não transformar o remédio em veneno.
Em um cenário polarizado, propor medidas restritivas para o uso das mídias sociais, com a definição de limites e penalizações, é um prato cheio de intrigas, que se come sentado sob o fio da navalha.
É como querer incluir regras num jogo já em andamento, no qual cada jogador faz o que bem entende e não aceita ceder um milímetro do espaço conquistado.
Mas, já que nenhum deus ex machina descerá dos céus com uma solução mágica, esta é uma pauta que precisa ser levada adiante, por mais complexa e espinhosa que seja.
É imprescindível que representantes de todos os setores envolvidos participem, para que as soluções sejam as mais justas e imparciais possíveis, evitando que a balança penda para um dos lados.
Punir somente as big techs, por exemplo, não resolverá a equação e, ainda por cima, criará involuntariamente um mecanismo de censura preventiva. É como aquela história do sujeito que joga o sofá fora para não flagrar novamente a mulher com o amante na sala.
A regulação das comunidades digitais passa necessariamente pelo letramento digital e pela formação contínua de netcitizens, que é um processo de longo prazo. Ao mesmo tempo, é fundamental estabelecer regras claras e sem ambiguidades sobre direitos, distribuição de responsabilidades, limites e penalizações.
Por fim, é preciso criar um sistema de freios e contrapesos envolvendo a indústria, o governo e a sociedade, que garanta a harmonia entre eles, a soberania cidadã e o direito à liberdade de expressão. Somente dessa forma será possível construir um ambiente digital saudável e seguro para todos.
Não podemos ser pollyannas e acreditar que leis e as proposições de grupo de trabalho serão aceitas prontamente ou que resolverão o problema de imediato. É natural que haja resistências e lacunas a serem preenchidas. Processos de mudança cultural necessitam de tempo e calibragens regulares para que surtam o efeito desejado.
O importante é que o primeiro passo está sendo dado. Negligenciar por mais tempo a situação calamitosa em que se encontra as redes sociais seria uma temeridade, pois correríamos o risco de não termos mais vidros para substituir os danificados.
*Denis Zanini Lima é diretor de Redes Sociais da Bússola e CEO da Ynusitado Digital Marketing Intelligence
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