Revista Exame

O oráculo Alan Greenspaan, ex-Fed, dá a sua versão

Em O Mapa e o Território, um dos livros mais esperados do ano, Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, tenta explicar por que não conseguiu evitar a maior crise da história do capitalismo. Leia trecho exclusivo da obra, que será lançada no Brasil em novem


	Alan Greenspan: antes da crise de 2008, sua reputação parecia inabalável
 (AFP/Chip Somodevilla)

Alan Greenspan: antes da crise de 2008, sua reputação parecia inabalável (AFP/Chip Somodevilla)

DR

Da Redação

Publicado em 30 de novembro de 2013 às 13h23.

 "Eu não esperava receber aquela ligação. Acabara de chegar em casa depois de uma partida de tênis. Domingo, 16 de março de 2008, tarde de vento gelado. Um diretor sênior do conselho do Federal Reserve (o banco central americano) estava na linha para me alertar de que acabara de ser invocada, pela primeira vez em décadas, a obscura mas explosiva seção 13 da Lei do Fed.

Em uma interpretação ampla, a seção 13 dava ao Fed o poder de conceder empréstimos em espécie, em quantias quase ilimitadas, a potencialmente qualquer um. Naquele dia, a seção 13 deu ao Fed de Nova York o poder de emprestar 29 bilhões de dólares para facilitar a aquisição do banco Bear Stearns pelo JP Morgan.

Fundado em 1923, o Bear Stearns, menor dos grandes bancos de investimentos americano, estava à beira da falência, tendo perdido quase 20 bilhões de dólares de caixa somente na semana anterior. Sua derrocada foi o começo de seis meses de erosão da estabilidade financeira que culminou na falência do banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008, desencadeando aquela que foi possivelmente a maior crise financeira de todos os tempos.

O papel da natureza humana nos assuntos econômicos nunca fora tão visível quanto naquele fatídico dia de setembro e nas semanas seguintes. A crise financeira representou uma crise existencial para as previsões econômicas. Dei início a minha investigação para entender como pudemos errar tanto — e que lição podemos tirar do que aconteceu. 

Tive plena certeza da gravidade da crise financeira global logo no dia 9 de agosto de 2007, quando foi revelado que o banco BNP Paribas, um dos principais da França, detinha em default quantidades significativas de hipotecas americanas subprime securitizadas. A essa revelação seguiu-se, horas depois, uma injeção maciça de reservas do Banco Central Europeu.

Em 10 de agosto, uniram-se os bancos centrais de Estados Unidos, Japão, Austrália e Canadá na primeira ação coordenada de bancos centrais desde 2001. Fiquei espantado. Esse tipo de coordenação só ocorre quando os bancos centrais sentem o risco de iminente ruptura.

Durante algum tempo, o receio oficial se restringia aos setores financeiro e imobiliário. No início de 2007, a composição dos balanços empresariais e fluxos de caixa não financeiros do mundo parecia estar em uma forma melhor do que eu jamais vira. A bolsa americana atingiu um pico histórico em 9 de outubro de 2007. Mas as fissuras já estavam aparecendo.

À medida que a crise se alastrava, o preço das ações dava uma virada negativa e declinaria durante os 11 meses que antecederam a falência do Lehman. Quando o Lehman entrou em default em 15 de setembro de 2008, as perdas globais das ações de empresas negociadas em bolsa atingiam 16 trilhões de dólares.


Semanas depois, já somavam 35 trilhões. Ao fim, as perdas na economia como um todo chegaram a cerca de 50 trilhões de dólares, o equivalente a quatro quintos do PIB global de 2008.

Em 2005 e 2006, as originações de hipotecas subprime tinham inchado a 20% do total de originações hipotecárias residenciais nos Estados Unidos, quase o triplo da fatia de 2002.

No Fed, tínhamos conhecimento, desde o início da década, de casos de práticas altamente irregulares de subscrição de hipotecas subprime. Mas lamentavelmente vimos isso como um problema localizado, e não o precursor de uma bolha de hipotecas subprime que surgiria vários anos depois.

Porém, mesmo que tivéssemos mais dados, o Fed pouco poderia ter feito para conter a alta do preço dos imóveis. Alguns acadêmicos preconizavam uma redução progressiva da bolha por meio de um aperto gradual da política monetária, mas no mundo real esse tipo de política gradual parece nunca ter dado certo.

Visto de hoje, o aperto progressivo do Fed diante da incipiente bolha ponto-com, em 1994, pode ter estimulado essa bolha, em vez de contê-la. Os responsáveis por políticas públicas se defrontam o tempo todo com problemas do gênero. Conseguimos identificar as bolhas quando elas começam a inflar, mas não conseguimos prever a complexidade de sua resolução e de seu estouro.

E talvez nunca consigamos. Os servidores públicos têm frequentemente de escolher entre reprimir ou não uma ampla variedade de práticas de mercado e, conforme a decisão, aceitar a restrição inevitável ao crescimento econômico que isso representa.

No crescente ambiente de euforia nos anos que antecederam o crash de 2008, os gerentes de risco privados, o Fed e outros reguladores deixaram de garantir que as instituições financeiras estivessem adequadamente capitalizadas, em parte porque nenhum de nós soube compreender a dimensão subjacente e a extensão total dos riscos que seriam revelados depois do surgimento da crise pós-Lehman.

Não soubemos compreender totalmente, em especial, o tamanho da expansão do chamado ‘risco de cauda’. O ‘risco de cauda’ é o jargão financeiro usado para identificar o tipo de resultado de investimento cuja probabilidade de ocorrência é muito baixa — mas que, caso ocorra, é acompanhado de prejuízos muito grandes.

Durante décadas, diversos fenômenos incomuns, do tipo que acontecem uma vez na vida, ocorreram com uma frequência grande demais para que se pudesse atribuí-los, de forma crível, apenas à sorte. Um momento marcante para mim foi o crash totalmente inédito da bolsa de valores em 19 de outubro de 1987, que derrubou em mais de 20% o índice Dow Jones em um único dia.


Simplesmente não havia um modelo de probabilidades a partir do qual aquele evento pudesse ter sido previsto. Por que a bolha de 2007 atingiu uma euforia que só se vê uma vez por século? A resposta, acredito, repousa nas bolhas pontocom e de 1987, cujos estouros deixaram uma marca muito pequena nos PIBs americano e global.

Esses dois episódios levaram muitos, no meio dos economistas e entre os investidores mais sofisticados, a acreditar que futuras contrações também não seriam piores que uma recessão típica de pós-guerra. Como consequência da subestimação do perigo, os administradores de risco não anteciparam a quantidade de capital adicional necessária para servir de reserva quando o sistema financeiro foi sacudido de forma violenta. 

O colapso financeiro de 2008 rendeu uma enorme quantidade de dados. O desafio será usar esses dados para criar uma avaliação mais realista das probabilidades dos resultados financeiros, com ênfase naqueles que representam os maiores riscos para o sistema financeiro e a economia. Espera-se que, em uma futura crise profunda — que certamente ocorrerá —, tenhamos mais informação a respeito do funcionamento dos mercados de ‘cauda larga’.

A lição que fica

A tendência mais problemática que surgiu da crise é a doutrina do ‘grandes demais para falir’. O papel das finanças é alocar a poupança de uma sociedade para o financiamento dos investimentos mais promissores. A doutrina do ‘grandes demais para falir’ aborta esse processo e o crescimento econômico — e está rapidamente gerando um capitalismo de compadrio nos Estados Unidos.

Cheguei a me desesperar porque, se o Estado continuar a custodiar bancos, não vejo como eles terão incentivos para reduzir de tamanho a um nível que, em caso de falência, não sejam uma ameaça à estabilidade das finanças. Há, infelizmente, uma dificuldade compreensível em permitir a queda de ícones que foram símbolos históricos da ascensão americana, como a montadora General Motors.

Não é fácil aceitar, do ponto de vista emocional, o fim de um símbolo tão americano. Mas a American Woolen e a Kodak, que foram símbolos em suas épocas, encolheram sem que ocorresse uma ruptura econômica.


Quando instituições financeiras consideradas ‘sistemicamente importantes’ gozam de uma garantia implícita do governo a suas dívidas, os investidores veem essas empresas como quase isentas de risco e lhes concedem subsídios na taxa de juro. Isso lhes proporciona uma vantagem competitiva que não foi alcançada por meio de ganhos de produtividade.

A poupança é canalizada para os politicamente poderosos, não para os economicamente eficientes. Ganhos de produtividade futuros e padrão de vida são postos em risco.

Hoje, o viés para gastos deficitários irrestritos é nosso principal problema econômico interno. A única maneira de obter impostos permanentemente baixos é reduzindo os gastos. Estamos nos enganando se acreditamos em outra coisa. O conflito de objetivos se manifestou de forma mais visível nas recentes batalhas sobre as prioridades do orçamento federal americano.

Elas expuseram uma divisão em nosso eleitorado que é inédita em nossa expe­riência do pós-guerra. Os conflitos políticos que estamos vivendo refletem as trajetórias fiscais, monetárias e regulatórias em que nos encontramos.

Não vejo nenhuma maneira de eliminar exuberâncias irracionais periódicas sem reduzir significativamente a taxa média de crescimento e os padrões de vida. Não havia nenhuma exuberância irracional na União Sovié­tica e não há nenhuma na Coreia do Norte de hoje. Mas havia, e há, um padrão de vida rebaixado.

Padrões de vida crescentes requerem inovadores que tenham expectativa ilimitada de sucesso e perseverança, não importa quantas vezes fracassem. Penso em particular em Thomas Edison. A exuberância é necessária — mesmo que às vezes incorra em excessos.”

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