Revista Exame

O que fazer quando o aplicativo vai para o banco dos réus?

Plataformas que conectam clientes a trabalhadores autônomos são alvo da Justiça americana — é a nova versão do velho embate entre capital e trabalho

Doralice, Faxineira da Helpling, em São Paulo: renda de até 3 000 reais mensais (Leandro Fonseca / EXAME)

Doralice, Faxineira da Helpling, em São Paulo: renda de até 3 000 reais mensais (Leandro Fonseca / EXAME)

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Da Redação

Publicado em 3 de junho de 2015 às 18h00.

São Paulo — O choque entre a nova e a velha economia tem um novo round. Nos últimos anos, sites e aplicativos facilitaram a intermediação do trabalho entre prestadores de serviço e quem deseja contratá-los. À distância de alguns cliques, o motorista particular é localizado para fornecer uma corrida, a diarista é solicitada para fazer uma faxina e o encanador é convocado para providenciar um reparo doméstico.

Do ponto de vista do cliente, é a garantia de ter acesso a um serviço de qualidade e sem complicação. Para os profissionais, essas plataformas costumam pagar mais do que a média do mercado. De modo geral, a maioria das pessoas está encantada com o novo modelo. Mas há quem comece a enxergar problemas.

Nos Estados Unidos, onde essas plataformas já existem há pelo menos cinco anos, uma parcela de motoristas, faxineiros e entregadores passou a questionar se, no final das contas, os aplicativos e sites não acabaram virando um novo tipo de patrão que dribla obrigações trabalhistas e, algumas vezes, chega a reduzir o salário sem nenhuma explicação. Será que a inovação pode virar exploração? A questão foi parar na Justiça.

No mercado americano, empresas como o Uber e o Lyft, que conectam motoristas a usuários, o Handy, que gerencia uma rede de prestadores de serviços domésticos, e o Postmates, que faz a intermediação do trabalho de entregadores de encomendas, estão sendo processadas.

Ao conectar autônomos a usuários, essas empresas recebem os pagamentos, cobram uma espécie de comissão, que varia de 10% a 25% do valor que o cliente paga pelo serviço, e repassam o restante para o profissional. Elas selecionam os autônomos, checam antecedentes criminais e garantem alto padrão de serviço.

Mas, como sua estrutura é formada por uma rede de prestadores de serviço, essas empresas não arcam com custos trabalhistas, que equivalem de 20% a 30% da hora trabalhada numa operação tradicional do mesmo setor. Parte da economia é repassada aos profissionais. Um faxineiro com contrato de trabalho recebe, em média, 10,8 dólares por hora — ante os 18 dólares que o Handy paga. Por que, então, a Justiça está acompanhando esses sites?

Em outubro do ano passado, os motoristas do Uber fizeram greve em diversas cidades dos Estados Unidos devido à diminuição de até 30% nos valores repassados pela empresa.

A redução da tarifa — e consequentemente dos ganhos dos trabalhadores — foi uma forma de a companhia ganhar mais competitividade num mercado que ela mesma inventou e acabou por atrair outros concorrentes, como o Lyft e o Sidecar. Além da competição, o Uber se viu obrigado a gerenciar o próprio sucesso.

À medida que o Uber se tornou conhecido, aumentou a procura de motoristas interessados em fazer parte do serviço. Hoje são cerca de 160 000 motoristas nos Estados Unidos. Seguindo a lei da oferta e da demanda, o valor do trabalho caiu, e a voz dos críticos ficou mais perceptível.

“Não há segurança econômica, previsibilidade e poder de barganha entre os trabalhadores para obter uma parte justa dos lucros”, disse Robert Reich, secretário do Trabalho do governo de Bill Clinton, em uma entrevista recente à imprensa americana. Reich e outros temem — com boa dose de exagero, diga-se — que a atual falta de regulação sobre essas plataformas faça com que a dinâmica no mercado de trabalho retroceda aos primórdios do capitalismo, quando os empregados recebiam por peça produzida e não tinham direito a benefícios.

As empresas de tecnologia, obviamente, refutam essa imagem de inescrupulosos que exploram seus trabalhadores. A maioria defende estar oferecendo uma oportunidade para que prestadores de serviço se tornem empreendedores.

“Os milhares de motoristas que usam o aplicativo do Uber são uma prova disso”, afirmou a empresa em um comunicado durante a última greve nos Estados Unidos. Também questionado, o Handy colocou um texto em seu site no começo do ano dizendo que a plataforma dá aos trabalhadores a “flexibilidade necessária para escolher os trabalhos que mais lhes convêm”.

À espera do veredito

O caso mais famoso de descontentamento com esse novo tipo de trabalho até agora veio à tona no final do ano passado. Em Los Angeles, na Califórnia, as irmãs albanesas Vilma e Greta Zenelaj entraram com um processo contra o Handy. Na ação, elas alegam que a empresa as tratava como autônomas, mas agia como um empregador formal, determinando o valor a ser cobrado dos clientes, o uso de uniforme e as regras de execução do serviço, como os produtos de limpeza que deveriam ser utilizados em cada tarefa.

“As empresas impõem regras e exigem um bom desempenho do profissional. Na prática, elas são empregadoras, mas dizem estar somente intermediando o trabalho para evitar as obrigações trabalhistas”, afirma a advogada Shannon Liss-Riordan, que representa dezenas de trabalhadores em processos contra essas plataformas.

Na Justiça, as irmãs pedem o pagamento de horas extras e a compensação pelo não cumprimento da pausa para o almoço. Se condenado, o Handy terá de pagar 290 000 dólares para Vilma e Greta.

O que assusta os investidores no Vale do Silício é a possibilidade de que uma enxurrada de processos na Justiça coloque em xeque um modelo de intermediação de serviços que, segundo estimativas do fundo de investimento americano Greylock Partners, deverá faturar 10 bilhões de dólares nos Estados Unidos neste ano.

Em março, juízes da Califórnia determinaram que a decisão sobre se os motoristas do Uber e do Lyft são empregados ou contratados independentes, dois processos que correm em paralelo, será levada a júri popular em agosto. Se ambas forem condenadas a contratar milhares de motoristas, o valor de mercado das duas empresas pode despencar. “Essas companhias ganham muito dinheiro. Não é o fato de serem obrigadas a pagar direitos trabalhistas que vai fazê-las desaparecer”, diz Shannon.

No Brasil, essas plataformas começam a se popularizar agora, e o namoro segue firme entre empresas de tecnologia e trabalhadores. Em janeiro, a paulistana Doralice da Silva, de 46 anos, viu em uma rede social um anúncio da Helpling, empresa alemã que conecta diaristas a quem demanda serviços de faxina nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

Vivendo de bicos nos últimos dois anos, ela se inscreveu no site da empresa e foi selecionada. “Trabalho todos os dias da semana e ganho cerca de 60% mais”, diz Doralice. De acordo com a Helpling, a remuneração média mensal varia de 2 500 a 3 000 reais.

No site 99Motos, especializado em entregas em São Paulo e no Rio de Janeiro, o vínculo empregatício dos prestadores de serviço com outras empresas é usado como argumento. “Temos muitos motoboys que têm trabalho fixo e usam nosso site para ganhar um dinheiro extra nas horas vagas”, diz Jhonata Emerick Ramos, presidente do site 99Motos.

As startups de tecnologia que começam agora no segmento de serviços por demanda tomam certos cuidados para que não seja caracterizado vínculo empregatício entre a plataforma e os autônomos. Elas evitam, por exemplo, dar treinamento aos prestadores de serviço ou que haja uma relação de chefia com funcionários das startups.

“Sob a lei brasileira, é difícil caracterizar vínculo trabalhista para quem faz apenas a conexão entre o prestador de serviço e o cliente”, diz o advogado Renato Opice Blum, especialista em direito digital. “Mas é fato que algumas dessas empresas estão numa área cinzenta.” A batalha entre capital e trabalho no século 21 está apenas começando.

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