Revista Exame

A vez das empresas multilatinas

Com o Brasil na dianteira, as multinacionais da América Latina exploram as oportunidades da própria região e preparam-se para alçar voo em mercados mais distantes


	Fusão da Lan com a TAM: o Brasil, maior mercado da América Latina, atrai um número crescente de investidores de outros países da região
 (Jialiang Gao/Wikimedia Commons)

Fusão da Lan com a TAM: o Brasil, maior mercado da América Latina, atrai um número crescente de investidores de outros países da região (Jialiang Gao/Wikimedia Commons)

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Da Redação

Publicado em 11 de julho de 2013 às 06h00.

São Paulo - Era o final dos anos 70. Na televisão brasileira, Carga Pesada, série da Globo que contava a história de dois caminhoneiros, Bino (Stenio Garcia) e Pedro (Antonio Fagundes), fazia o maior sucesso. A série veio na esteira dos grandes investimentos em estradas feitas pelo Brasil no período conhecido como “milagre econômico” e no fantástico crescimento do transporte de carga.

Mas, para a direção do grupo Odebrecht, responsável por algumas das maiores obras de infraestrutura do país, já estava claro que o Brasil estava perdendo o fôlego. Foi então que a empresa decidiu iniciar sua estratégia de internacionalização. O primeiro passo foi no Peru, onde a Odebrecht ficou com a missão de construir, a partir de 1979, a hidrelétrica Charcani V, na região de Arequipa, a 1 000 quilômetros de Lima.

Durante a obra, tremores de terra se repetiam várias vezes por dia. A temperatura chegava a ficar abaixo de 15 graus negativos. A altitude de até 3 700 metros era um desafio aos engenheiros brasileiros. Desde então, o grupo Odebrecht transformou-se na maior multinacional brasileira presente na América Latina.

No ano passado, a receita gerada na região por seus negócios nos setores de construção e químico chegou a 23,4 bilhões de reais, valor correspondente a uma fatia de 28% do total do grupo. Em termos de peso, perde apenas para o mercado brasileiro. Só no caso da construtora, que atua em nove países, os vizinhos representam metade das receitas.

O grupo Andrade Gutierrez, também do setor de construção, foi outra das pioneiras brasileiras na América Latina — e pelos mesmos motivos. Sua estreia aconteceu na Bolívia em 1984. “Iniciar pela América do Sul trouxe mais segurança. Era mais fácil fazer o intercâmbio de funcionários e transportar material”, diz Otávio Azevedo, presidente do grupo.

Ao longo das três décadas seguintes, a proximidade geográfica, o idioma acessível e as semelhanças culturais continuaram levando empresas para a região. Isso ficou comprovado na segunda leva de internacionalização, nos anos 90, logo após a assinatura do Mercosul, e, mais recentemente, quando as empresas brasileiras quiseram pegar uma carona no crescimento dos países vizinhos. 

Um levantamento realizado pela consultoria de estratégia Boston Consulting Group a pedido da Brain, entidade que promove o Brasil como polo de negócios, mostra que em 2010 havia 115 multinacionais de origem latina (as multilatinas). São consideradas apenas companhias com receitas totais acima de 500 milhões de dólares e operações em mais de três países. Três anos antes, o grupo era formado por 100 empresas.

O Brasil lidera a lista com 37 empresas, três a mais do que em 2007. “Em geral, são grupos que ficaram muito fortes em seus respectivos mercados nos últimos anos e, para crescer, decidiram buscar oportunidades no exterior”, diz Enrique Biancotti, diretor da empresa de pesquisa Ipsos responsável pelo departamento especializado em companhias de países emergentes.


Maior mercado da região, o Brasil tem atraído um número crescente de multilatinas. A companhia aérea chilena LAN concretizou no ano passado a associação com a TAM. O negócio foi o décimo maior envolvendo companhias da América Latina em toda a história.

Rebatizada de Latam, a companhia é a quarta maior aérea em valor de mercado das Américas, atrás das americanas Delta Airlines, United Airlines e Southwest Airlines. O Chile, aliás, começa a despontar como destaque. As empresas chilenas investiram 22 bilhões de dólares no exterior em 2012, um recorde e o dobro do valor de 2010.

“O Chile está começando a se posicionar como um dos líderes regionais”, diz Javier Santiso, professor de economia da escola de negócios espanhola Esade, no livro The Decade of the Multilatinas (“A década das multilatinas”, numa tradução livre).

As multilatinas do México também têm presença cada vez mais relevante na região, como mostram as operações da companhia de telecomunicações América Móvil e a de alimentos Bimbo. Mas os mexicanos se diferenciam por dar atenção especial ao mercado americano.

O recém-assinado acordo para a criação de uma área de livre comércio entre México, Colômbia, Peru e Chile pode aumentar o  peso da América Latina para os mexicanos. “Um dos efeitos dessas iniciativas costuma ser o aumento dos investimentos entre os países”, diz Maria Esther Morales Fajardo, pesquisadora do Centro Regional de Pesquisas Multidisciplinares da Universidad Nacional Autónoma de México.

Quando comparadas às multinacionais de outros países emergentes, as latinas têm uma característica que se destaca. A maioria — 97% delas — está nas mãos de investidores privados. Isso contrasta com as empresas russas e chinesas, que são, na maioria, controladas pelo setor público. 

Sueño ou pesadilla

A América Latina é, geralmente, o primeiro passo das companhias brasileiras fora do país, mas muitas vezes  o sonho de internacionalização transforma-se em pesadelo. A histórica instabilidade política e econômica dos países da região já levou empresas brasileiras a fazer as malas e voltar para casa.

A Odebrecht chegou a ser expulsa do Equador em 2008. Rafael Correa, o populista presidente equatoriano, acusou a empresa de irregularidades na construção de uma hidrelétrica. Dois anos depois, a Odebrecht concordou em fazer os reparos exigidos pelo governo e voltou ao país.


O foco mais recente de problemas é a Argentina. Em junho, a companhia de transportes ALL teve sua concessão de ferrovias cancelada pelo governo sob a alegação de descumprimento de contrato. A mineradora Vale suspendeu, em março, a implementação de um projeto de exploração de potássio na província de Mendoza, no valor de 6 bilhões de dólares.

A justificativa foi que o fundamento econômico do projeto não era adequado, o que causou uma enorme polêmica com o governo da presidente Cristina Kirchner.

Além da interferência política, os brasileiros na Argentina precisam enfrentar os altos e baixos da economia. A Andrade Gutierrez mantém seu quadro de funcionários de alto escalão no país, mas as atividades estão paralisadas. A fabricante de carrocerias de ônibus Marcopolo viu a média diária de produção cair de 12 para sete unidades no ano passado. 

Hoje, a situação do setor está melhor e a fábrica da Marcopolo voltou a produzir uma média de dez unidades por dia. “Se tivéssemos saído da Argentina, teríamos perdido essa recuperação”, diz Ruben Bisi, diretor de estratégia da Marcopolo.

A fabricante de alimentos BRF também aposta no futuro do mercado argentino. Em 2011, investiu 150 milhões de dólares na compra da Dánica, líder na venda de margarinas no país, e de uma empresa de abate de aves. 

Em muitos casos, as operações em países da América Latina têm sido o primeiro passo de um processo de internacionalização de maior alcance. No começo da década de 90, a fabricante de tubos e conexões Tigre instalou sua primeira fábrica própria na Argentina.

Depois de acumular mais de uma década de experiência na América do Sul com a expansão de suas operações por outros sete países, a Tigre construiu, em 2007, uma unidade nos Estados Unidos. Seu foco nos próximos anos será no mercado americano e no canadense.

“A América Latina é um grande teste para a internacionalização das companhias brasileiras. Quem consegue administrar bem os negócios numa região tão volátil está preparado para enfrentar qualquer mercado em qualquer lugar do mundo”, diz Evaldo Dreher, presidente da Tigre.

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