Revista Exame

Os bastidores da fusão que criou a maior cervejaria do mundo

Victorio De Marchi, ex-presidente da Antarctica e conselheiro da Ambev, conta, em livro, os bastidores da fusão com a Brahma em 1999

Cervejaria em São Paulo: o crescimento das cervejarias artesanais é uma mudança de hábito dos consumidores que obrigou a Ambev a adaptar sua estratégia (Germano Luders/Exame)

Cervejaria em São Paulo: o crescimento das cervejarias artesanais é uma mudança de hábito dos consumidores que obrigou a Ambev a adaptar sua estratégia (Germano Luders/Exame)

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Da Redação

Publicado em 15 de março de 2018 às 05h00.

Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 15h44.

A história da criação da cervejaria Ambev e de seu estrondoso crescimento é uma das mais contadas no mercado corporativo brasileiro. Mas normalmente do lado da Brahma, liderada na época pelo trio de investidores comandado por Jorge Paulo Lemann, hoje à frente do fundo 3G. De Duas Uma: A Fusão na Mesa, livro recém-lançado, conta a história da ótica de quem estava do outro lado da mesa, a cervejaria Antarctica. Seu autor, Victorio De Marchi, era o presidente da Antarctica e hoje é um ativo conselheiro da Ambev.

O livro relembra a ferrenha rivalidade entre as cervejarias, dá detalhes da sigilosa negociação e mostra a estratégia das empresas para aprovar o negócio no Cade, conselho de defesa da concorrência. Em entrevista a EXAME, na sede da cervejaria, De Marchi diz que a Ambev não mudou a receita de suas cervejas, mas que o gosto dos consumidores mudou, e que a empresa precisa se adaptar constantemente. Mas uma coisa, segundo ele, não mudará: a pressão pelo atingimento de metas agressivas — “mas não abusivas”, diz. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Por que o senhor decidiu contar a história agora, 20 anos depois da fusão entre as cervejarias?

O objetivo não foi fazer um livro somente sobre a fusão. Quis aproveitar para contar a evolução da indústria de cervejas e refrigerantes no Brasil sob minha ótica. Consigo falar da evolução da indústria de São Paulo e do Brasil e mostrar algumas mudanças significativas no jeito de trabalhar e de fazer negócios. Até os anos 60, um cidadão que completava dez anos na mesma empresa não podia mais ser mandado embora, a não ser por justa causa. Imagina como isso era desestimulante para a produtividade das companhias. Foi esse tipo de desafio, impensável para os dias de hoje, que precisamos superar para fazer crescer a Antarctica.

Os controladores da Brahma viam a fusão como o primeiro passo para um grupo global. Por que o senhor viu na fusão um bom negócio?

Nós tínhamos sérias dificuldades de crescer fora das fronteiras porque a taxa de juro no Brasil não era competitiva. Se eu quisesse comprar uma empresa na Argentina, as taxas eram tão altas que um concorrente americano, por exemplo, poderia oferecer o dobro do preço e ainda assim teria o mesmo retorno em dez anos. A mesma lógica nos tornava alvos para grupos internacionais. O segundo fator que nos fez sentar à mesa eram as evidentes sinergias. Cerca de 70% de nossa receita vinha de embalagens retornáveis. Tínhamos uma fábrica em Salvador, e a Brahma, outra em Recife, por exemplo. Eu mandava cerveja para o Recife, e a Brahma, para Salvador, e os caminhões voltavam cheios de garrafas vazias. Depois da fusão, passei a produzir as duas marcas na mesma fábrica. Isso gerou uma sinergia expressiva que elevou o patrimônio de todos os acionistas da Ambev. No caso da fundação Zerrener, controladora da Antarctica, o patrimônio passou de 400 milhões de reais, em 1999, para 33 bilhões de reais, em 2016.

As embalagens retornáveis voltaram a ser usadas em larga escala pela Ambev. Por que temos essa volta?

Com as embalagens retornáveis, vendemos apenas os líquidos, enquanto nas outras temos de pagar a embalagem. Elas funcionam pela conveniência, já que permitem que o consumidor não precise guardá-las para devolução. Mas isso tem um preço, e as pessoas precisam entender isso. Não tem almoço de graça.

Brahma e Antarctica eram rivais ferrenhas. Como esse Fla-Flu foi deixado de lado depois da fusão?

O mercado de cervejas sempre foi muito acirrado. E isso se traduzia na publicidade. A Antarctica, por ter uma produção menor, mantinha imagem de paridade pelos pesados investimentos em anúncios. Nosso produto, afinal, tem de ser vendido garrafa a garrafa, lata a lata. Mas estabelecemos alguns princípios básicos que nortearam nossa fusão. Montamos um grupo de trabalho com duas pessoas de cada empresa. Contratamos um só banco para fazer as avaliações de cada empresa. A Brahma produzia mais cerveja, então deveria valer mais. Mas, no controle, decidiu-se pela administração conjunta, com quatro conselheiros de cada lado e uma copresidência no conselho. Um grupo de trabalho escolheu as melhores pessoas e os melhores processos de cada uma das empresas. Levamos só 45 dias para costurar o acordo.

Essa divisão no conselho se provou bem-sucedida, mas não poderia ter dado continuidade às rivalidades?
Todos esses contratos são muito bacanas, mas em 20 anos nunca precisamos abrir os documentos. Deu certo por causa das pessoas envolvidas, que queriam que as coisas funcionassem. E nós não inventamos nada. A ideia de copresidência no conselho, por exemplo, o Citibank já usava. Claro que é difícil. Eu digo que, numa reunião de seis pessoas que sempre concordam, cinco estão sobrando. Mas somamos conhecimentos para tentar refinar as decisões. Naquela época vimos um estudo da consultoria McKinsey que afirmava que 75% das fusões davam errado. Nós ficamos nos 25%.

Os senhores imaginavam que estavam lançando as bases para a criação da maior empresa de cerveja do mundo?

O nome, Ambev [American Beverage Company], sugerido pelo Marcel Telles já na primeira reunião, indicava que queríamos crescer nas Américas. Mas fomos muito rápidos em dominar a região. Um ano depois de a fusão ter sido aprovada pelo Cade em 2000, já compramos duas fábricas no Uruguai. Em 2002, adquirimos a Quilmes, na Argentina, que tinha fábricas também na Bolívia, no Chile, no Paraguai e no Uruguai. Em 2004, a empresa viu a oportunidade de dar um passo maior com a compra da Interbrew. Mas aí foi uma negociação entre a Ambev, a Braco [controladores da Brahma] e os belgas. A fundação Zerrener decidiu não participar. No entanto, foi difícil: meditamos por dois meses.

Passados 19 anos da criação da Ambev, a empresa é cada dia mais contestada por ter produtos de massa que não atendem a um público mais exigente. Os resultados estão em queda. A empresa demorou a perceber as mudanças no mercado?

Claro que precisamos acompanhar o mercado e atender o que os consumidores querem. Dito isso, não dá para se antecipar aos fenômenos, até porque não dá para saber quanto tempo eles vão durar. Nos Estados Unidos, por exemplo, o mercado mais atingido pelas cervejas artesanais, já começa a haver certa estabilidade. Mas, enquanto os consumidores quiserem, e toparem pagar o preço, temos de testar. Um exemplo-limite é a Bélgica, onde uma única fábrica da Inbev, em Leuven, produz 268 produtos.

No passado, os consumidores falavam  das cervejas de determinada fábrica, e agora isso se perdeu. A receita das marcas tradicionais mudou?

Havia certa preferência mesmo. Em São Paulo, as cervejas de Ribeirão Preto ou de Agudos eram mais valorizadas. A Antarctica de Joinville [Santa Catarina] era a melhor do mundo, muito famosa. Mas mantivemos as fórmulas originais, o mercado é que mudou.

A cultura de gestão da empresa, sempre elogiada, passou a ser criticada. Cobram-se mais diversidade e menos pressão, por exemplo. A empresa precisa mudar?

Nossa porta de entrada para profissionais continua sendo o programa de trainees. Eu e os demais conselheiros participamos de entrevistas aqui, no Canadá e em Buenos Aires. É um pessoal de primeira linha, selecionado entre as melhores escolas, com os melhores perfis. Mas nós vamos procurar, cada vez mais, aperfeiçoar a seleção. Claro que, se adotarmos os mesmos processos de seleção, chegaremos aos mesmos perfis. Mas não temos pressão abusiva. Trabalhamos com metas, e elas são possíveis e discutidas com os próprios funcionários. Vem dando certo. 

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