Momentos históricos
Nem Joe Biden queria aquela viagem — ao menos não publicamente.
Era 2 de agosto de 2022 quando a presidente da Câmara dos Estados Unidos, a democrata Nancy Pelosi, começou a cruzar o Estreito de Taiwan em uma aeronave americana e, em movimento não confirmado até o último minuto, terminou de fato desembarcando na ilha.
Foi a primeira visita em 25 anos de um político americano desse escalão a Taiwan, território autônomo em relação à China desde 1949, mas que é centro de embates desde então.
O alto escalão do governo Biden havia passado os dias anteriores afirmando que a viagem, se ocorresse, era decisão da própria parlamentar e não uma ordem da Casa Branca ("O Exército acha que não é uma boa ideia", chegou a dizer Biden na ocasião).
Na linha tênue entre o que foi dito em público e o que se discutiu nos bastidores, a história mais ou menos se repetiu neste mês de abril, quando a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, foi aos EUA para uma visita ao atual presidente da Câmara, Kevin McCarthy, sucessor de Pelosi e do Partido Republicano.
The friendship between America and the people of Taiwan has never been stronger. It is my honor to welcome President @iingwen to the @Reagan_Library. pic.twitter.com/2XSIJRv7Vp
— Kevin McCarthy (@SpeakerMcCarthy) April 5, 2023
Como havia ocorrido antes, Tsai Ing-wen não se encontrou com Biden e restringiu o contato ao presidente da Câmara.
Ainda assim, o caso desencadeou pesadas críticas chinesas e exercícios militares no estreito que separa o país das ilhas de Taiwan, enquanto jogou lenha na fogueira em uma relação que tem piorado nos últimos anos.
Os EUA, por sua vez, também têm feito exercícios militares na região e ampliado relações com Taiwan.
Analistas ouvidos pela EXAME apontam que os acontecimentos recentes não necessariamente significam uma escalada das tensões no âmbito militar.
A resposta simbólica da China já era esperada e, em alguma medida, foi inclusive menor em escala, duração e intensidade desta vez na comparação com os exercícios feitos após a viagem de Pelosi, avaliou a associada da consultoria de risco Eurasia, Ava Shen.
“A resposta militar chinesa não representa uma escalada – não prenuncia um plano de acelerar uma invasão chinesa a Taiwan, e é muito improvável que desencadeie uma resposta militar de Taiwan ou dos EUA”.
Apesar disso, a soma dos fatores, de fato, “elevou o nível das atividades militares no Estreito de Taiwan”, que tem batido recordes, aponta Shen.
Desde 1949, a "República da China"
Taiwan é uma ilha com cerca de 24 milhões de habitantes, separada pelo mar da China continental em cerca de 200 quilômetros.
A ilha tem na prática um governo autônomo desde 1949, ano em que o Partido Comunista Chinês de Mao Tse-Tung venceu uma guerra civil que perdurava desde 1927 e chegou ao poder na China.
O então líder da China derrubado pela revolução, Chiang Kai-Shek, fugiu com aliados políticos para fundar Taiwan, também chamada de "Formosa".
Os opositores do Partido Comunista fundaram em Taiwan um governo paralelo, que chamaram de "República da China" (enquanto a China continental é a "República Popular da China").
Seu status é debatido desde então. Nos fóruns internacionais, os dois governos disputaram por algum tempo para decidir de quem era a herança de legítimo governo chinês. A briga acabou em partes nos anos 1970, com as Nações Unidas (ONU) e outros organismos internacionais passando a reconhecer a China continental com capital em Pequim.
Hoje, a China não considera Taiwan um território independente da porção continental e o status da ilha (que não é um país reconhecido) é controverso.
A maioria dos países na ONU, como o Brasil e mesmo os EUA, também não reconhecem a independência de Taiwan e hoje embasam sua diplomacia no conceito de "China única", reconhecendo a China continental, mas, ao mesmo tempo, tendo Taiwan como um território com governo autônomo.
Apesar disso, a autonomia da ilha segue um dos assuntos prioritários em Washington, o que gera uma linha tênue com Pequim. Os EUA dizem defender o "status quo", isto é, que Taiwan continue com governo autônomo frente à China, mesmo que não como um país.
E assim a situação permanecia, até meados da década passada.
De Trump a Xi, como tudo piorou
Uma série de fatores, combinados, levaram as tensões em Taiwan a atingirem o que talvez sejam seus piores picos desde a Guerra Fria.
Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump foi eleito em 2016 com uma retórica anti-China ampliada em relação aos antecessores. E, ao menos nesse assunto, a posição foi em larga medida mantida pelo atual presidente Joe Biden ao suceder Trump em 2021.
Em Taiwan, Tsai Ing-wen foi eleita em 2016 e reeleita para um segundo mandato em 2020. Seu Partido Democrático Progressista (DPP) defende a autonomia de Taiwan separada o máximo possível do continente. Tsai Ing-wen chegou a falar diretamente contra o conceito de “China única” no começo do mandato.
“Pequim historicamente não gosta do DPP e o percebe como um partido 'separatista'”, explica Shen, da Eurasia.
O governo central na China logo começaria a aumentar a pressão militar e diplomática sobre Taiwan – e a pandemia ajudou a distanciar as relações.
Enquanto isso, na China, o presidente Xi Jinping — que havia chegado ao poder em 2013 — vinha sendo reeleito para um e outro mandato e, com o tempo, intensificou a retórica tanto com relação a Taiwan quanto aos EUA.
Neste ano de 2023, Xi também foi reeleito de forma inédita para um terceiro mandato, o que não costumava acontecer nas últimas décadas dentro da dinâmica do Partido Comunista em Pequim e o consolida como um dos líderes mais poderosos do país desde Mao Tse-Tung pós-revolução.
“As relações EUA-China se deterioram desde 2016”, resume Shen.
“A China tem sido perturbada pelo aprofundamento dos laços EUA-Taiwan, e por isso recorre a demonstrações de força para dissuadir (sem sucesso) essa aproximação. Pequim percebe os EUA como trabalhando para realizar a independência de Taiwan, embora o governo dos EUA ainda respeite a política de ‘China Única’”, diz a analista.
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Um país, dois sistemas?
Na visão de Alessio Patalano, do Departamento de Estudos da Guerra na King’s College de Londres, na Inglaterra, a situação em Hong Kong foi outro dos fatores cruciais no debate recente.
A ilha de Hong Kong, que foi colonizada pelos britânicos e entregue à China em 1997, é hoje também um território autônomo em relação à porção continental do país, tendo um governo local próprio (embora não diretamente eleito como o de Taiwan).
Em 2014, protestos começaram a eclodir em Hong Kong demandando mais autonomia em relação a Pequim. A situação escalou de vez em 2019 e 2020, quando a maioria dos das lideranças políticas dos protestos foram presos ou exilados e o controle da China continental sobre a ilha no governo Xi Jinping foi endurecendo.
"Há uma mudança significativa na China em relação à ideia de 'um país, dois sistemas'", diz Patalano. "Em alguma medida, o que houve em Hong Kong mudou as percepções em Taiwan sobre a probabilidade de tal sistema continuar de fato e ser garantido pelas autoridades na China continental", diz.
Assim, longe de um caso isolado, para Patalano, Hong Kong mostra ainda outras duas questões na China que “mudaram as dinâmicas” até o nível de tensão atual: a visão do governo Xi Jinping sobre o conceito prático de China Única, e a ascensão militar dos chineses.
"É algo que mudou enormemente nos últimos anos, essa ideia de que o governo chinês, sob Xi Jinping, tenta transformar a política de 'China única' em um "princípio de China única". São coisas diferentes na discussão prática de como se chegar até lá”, diz o analista.
Sua visão é de que a China "coloca hoje muito mais pressão em Taipei para aceitar os termos de Pequim e conseguir uma reconciliação, ou até uma reunificação".
Briga de potências
O mundo, afinal, não é mais o mesmo de dez anos atrás. Nos últimos anos, a China chegou ao posto de segunda maior economia do mundo e caminha para superar os EUA na próxima década. Seu poderio militar e político no mundo caminhou junto às mudanças econômicas.
Atualmente, a China é o segundo país com maiores gastos em Defesa, atrás dos EUA, que tem desde a Segunda Guerra Mundial o exército mais caro do mundo (o maior, em números absolutos, é o chinês, com 1,4 milhão de integrantes só na ativa).
"A China tem hoje muito mais capacidade militar de impor seus desejos. E, em contrapartida, isso muda as posturas militares em Taiwan e o tipo de apoio que é demandado dos EUA”, diz Patalano.
Nesse novo cenário, pelo lado dos EUA, um exemplo de como a discussão mudou na última década veio da própria visita da presidente de Taiwan ao presidente da Câmara neste mês. Perguntado se a Casa Branca de Biden estava se esquivando de enviar armas e apoio militar a Taiwan, McCarthy, que é opositor do governo, não usou a oportunidade para criticar o presidente e disse que a gestão Biden "vê a importância" do tema.
“Eu não estou sentindo as mesmas diferenças que você pontua na sua pergunta”, respondeu McCarthy a um jornalista.
As elites de republicanos e democratas estão em embate ferrenho nos EUA sobre quase tudo nos últimos anos. Mas, ao que parece, não sobre Taiwan.
“Foi um momento pequeno, mas notável, que pareceu ilustrativo de quão próximas as duas partes se tornaram sobre esse assunto”, avaliou na ocasião a comentarista Andrea Mitchell, da rede de TV NBC.
Taiwan é a próxima Ucrânia?
Quando o ataque russo à Ucrânia começou oficialmente, em fevereiro de 2022, as atenções logo se voltaram para Taiwan pelos potenciais semelhanças. A guerra na Ucrânia, mais do que o embate entre dois vizinhos, escancarou a disputa de gigantes que se desenha entre Estados Unidos, China e suas respectivas órbitas de influência. Argumentou-se que o conflito seria um "divisor de águas" na política internacional.
Passado mais de um ano, a preocupação entre os potências ocidentais no G7 (grupo de sete das principais economias) de fato aumentou, avalia Shen, da Eurasia. O que não significa, porém, um efeito militar prático.
“Uma invasão chinesa de Taiwan é muito improvável nos próximos anos. A China ainda prefere alcançar a unificação sem recorrer a uma invasão, que cada vez mais parece cara e imprevisível, dada a trajetória da guerra na Ucrânia”, diz Shen.
“Os militares chineses são inexperientes e ainda não têm as capacidades necessárias para executar uma invasão e ocupação de Taiwan. A resposta internacional de sanções contra a Rússia também alertou Pequim sobre os impactos potenciais de uma invasão em sua economia, hoje globalmente conectada”, diz a analista da Eurasia.
O que os EUA fariam no caso de um hoje improvável ataque direto a Taiwan também é aberto a divagações.
- No cenário de Guerra Fria, Taiwan havia sido centro da disputa de União Soviética (que apoiava a China continental até 1960) e EUA (que estreitaram laços com Taiwan nos anos 1950).
- Taiwan e os EUA, por exemplo, assinaram em 1954 um acordo de defesa mútua.
- O acordo seria encerrado em 1979, quando os EUA passaram a reconhecer o governo comunista na China continental.
- A partir daí, os americanos oferecem somente apoio técnico a Taiwan, mas não têm compromisso de defesa.
Os EUA evitam mencionar atualmente que defenderão Taiwan no caso de um ataque chinês, embora uma gafe do presidente Joe Biden neste ano tenha sido também ilustrativa sobre os debates que rondam os EUA. Em visita ao Japão no ano passado, Biden foi perguntado por jornalistas se, ao contrário do que ocorreu na Ucrânia com a invasão russa, os EUA tomariam alguma ação militar direta caso a China invadisse Taiwan. Biden se embaralhou e respondeu que "talvez".
"Olha, essa é a situação: nós concordamos com a política de China única", disse logo depois, tentando contornar a resposta, mas concluiu novamente afirmando que "a ideia de [Taiwan] poder ser tomada à força - simplesmente tomada à força - não é apropriada", disse o presidente americano em 2022.
Patalano, da King’s College, acredita que Taiwan é “a Ucrânia ao contrário”: demandaria, pela ótica dos EUA e do Ocidente, não o envio de armas, mas esforços de inteligência que possam impedir quaisquer avanços chineses em primeiro lugar.
Especializado nos estudos de conflitos marítimos no leste asiático, ele argumenta que, ao contrário da Ucrânia, Taiwan exigiria um ataque por mar, o que é mais complexo. Apesar disso, aos moldes do que o presidente russo Vladimir Putin fez anexando a Ucrânia, um primeiro alvo chinês poderiam ser as ilhas de Pratas and Itu Aba, que estão mais distantes da ilha central do arquipélago de Taiwan.
Se esse é ainda um cenário para o futuro, hoje, na visão de Patalano, o que deve acontecer em Taipei é uma tentativa de aumento da pressão e influência diplomática chinesa para que a oposição a Tsai Ing-wen ganhe força. O pesquisador cita a aproximação chinesa com o Kuomintang, partido de oposição ao atual governo do DPP (o líder da oposição viajou a Pequim no mesmo dia em que Tsai Ing-wen foi aos EUA, e disse que a escolha deveria ser "pela paz").
A terra dos microchips
Embates políticos à parte, o mundo inteiro também estará de olho no que ocorre no Estreito de Taiwan por outro motivo: a importância da ilha para uma economia global que se tornou dependente de microchips.
Nas últimas décadas, a economia de Taiwan se destacou sobretudo pela atuação na fabricação de produtos de alta tecnologia — o país é lar, por exemplo, da Foxconn, que produz os iPhones da Apple. Taiwan tem uma das dez maiores economias da Ásia e está entre as 25 maiores do mundo, sendo considerada uma economia avançada pelo Fundo Monetário Internacional.
“Dado que a probabilidade atual de uma invasão chinesa é baixa, os riscos sobre o Estreito de Taiwan ainda não impuseram interrupções significativas”, afirma Shen, da Eurasia.
“No entanto, se as atividades militares chinesas se intensificarem ainda mais no Estreito de Taiwan, com exercícios maiores e mais frequentes e guarda costeira chinesa realizando inspeções a navio, as empresas provavelmente enfrentariam variados graus de atrasos”, afirma. "Empresas e governos continuarão dedicando recursos para planejar e avaliar o impacto de uma contingência em Taiwan."
O risco global é que, se um movimento militar de larga escala ainda não é provável no curto prazo, ter os embates atenuando também não é. O ano que vem será também crucial: 2024 terá eleições tanto nos EUA (em que um embate entre Joe Biden e Donald Trump não é descartado) quanto em Taiwan. “Ambas as eleições afetarão a trajetória das relações. Um presidente do DPP em Taiwan e uma administração republicana nos EUA aumentariam ainda mais as tensões em todo o Estreito de Taiwan”, diz Shen.
Da visão em transformação da China de Xi Jinping à mensagem cada vez mais uníssona de republicanos e democratas nos EUA — tudo somado a uma guerra na Ucrânia que envolve as duas potências e não tem previsão de acabar —, a tensão segue alta. Os 200 quilômetros que separam a China continental de Taiwan continuarão no centro dos debates globais nos próximos anos.
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Créditos
Carolina Riveira
Repórter de Economia e Mundo
Formada pela Universidade de São Paulo, cobre temas de políticas públicas, economia e política internacional para a EXAME. Publicou em veículos como Pequenas Empresas e Grandes Negócios e Folha de S.Paulo.