Grafite no bairro de Corktown, em Detroit, Michigan (Rafael Balago/Exame)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 1 de novembro de 2024 às 12h03.
Detroit e Grand Rapids, Estados Unidos - Andar pelas ruas de Detroit traz a sensação de estar em um domingo, mesmo que seja uma quarta-feira. Nos bairros centrais, há poucas pessoas e carros circulando, que mal enchem as ruas e avenidas largas. Mesmo com o ar de marasmo em suas vias, Detroit já atraiu vários comícios de Donald Trump e Kamala Harris ao longo desta campanha. A cidade e o estado serão absolutamente decisivos para definir quem será o próximo presidente dos Estados Unidos.
As pesquisas mais recentes mostram situação de empate técnico no estado. Um estudo feito pelo instituto Ideia, em parceria com a EXAME, apontou Kamala com 48% das intenções de voto, e Trump com 46%. Michigan tem 15 dos 538 delegados no Colégio Eleitoral, que escolherá o próximo presidente.
Foi em Detroit que Trump anunciou propostas para tentar estimular a indústria de carros. Uma delas é a de dar desconto em impostos para quem comprar veículos: o gasto com juros de financiamentos poderia ser deduzido, desde que sejam produzidos nos EUA. O republicano também promete aumentar tarifas de importação, como mais uma forma de pressionar os fabricantes a trazerem suas linhas de produção de volta
"Quando líderes estrangeiros e CEOs me ligarem para reclamar de tarifas, minha resposta será muito simples. Monte na América. Monte em Detroit, em Dearborn, ou Lansing, ou Grand Rapids", disse Trump, no Detroit Economic Club, no dia 10 de outubro.
A EXAME percorreu estas cidades ao longo de dois dias, pois elas integram dois dos condados decisivos para a eleição deste ano: Wayne County, que inclui Detroit, e Kent County, que abrange Grand Rapids. Quem ganhar ali aumenta as chances de vencer em Michigan. E quem conquistar o estado fica mais perto de assumir a Casa Branca.
Ao visitar Flint, em Michigan, no começo de outubro, Kamala também falou sobre o setor automotivo. Ela acusou o rival de fazer promessas vazias e se comprometeu a estimular a vinda de indústrias de carros elétricos aos EUA, como forma de gerar empregos.
Michigan já foi sinônimo da força industrial dos Estados Unidos. Detroit concentrava as montadoras de carros, na parte leste do estado. Do outro lado, perto da borda oeste (Michigan fica entre três lagos), está Grand Rapids. Nos dois casos, um fator ajudou estas cidades a se desenvolverem: as grandes reservas de madeira. Em Grand Rapids, elas ajudaram a criar uma indústria forte de móveis. Em Detroit, de veículos: os primeiros automóveis levavam muitas partes de madeira, e isso ajudou a cidade a se tornar a capital desta indústria, apelidada de Motor City.
A Ford, que inventou a linha de produção, se estabeleceu em Dearborn, cidade vizinha de Detroit. Outros fabricantes também cresceram ali, como Dodge, Crysler e General Motors. Além disso, havia rios e ferrovias que ajudavam a escoar os produtos e a cidade fica entre Chicago e Nova York, dois grandes polos consumidores. Com apoio da geografia, Detroit criou um ecossistema de inovação automotiva, que lembra o Vale do Silício: no começo do século 20, havia muita gente fazendo pesquisas sobre carros e criando empresas, que depois seriam absorvidas pelas companhias maiores ou se tornariam grandes marcas ao lucrar com a inovação.
A região também tinha grandes áreas para receber os complexos industriais enormes que seriam criados para produzir veículos. Essas estruturas demandavam milhares de trabalhadores, e Detroit atingiu 1,6 milhão de habitantes em 1930, se tornando a quarta maior cidade dos EUA. Em 1950, Detroit atingiria seu recorde, de 2 milhões de pessoas.
Enquanto crescia, Detroit priorizou os carros. Fez vias expressas para conectar bairros distantes às fábricas, onde pedestres não têm vez. As rodovias urbanas estimularam um espalhamento da cidade, com mais gente morando nos subúrbios, o que esvaziou os bairros mais centrais.
Ao mesmo tempo, após os anos 1950, a indústria automotiva americana reduziu a marcha e buscou novos rumos. Um deles foi a concentração, com Ford, GM e Crysler ganhando espaço em meio à falência de concorrentes. Outros foram o avanço de automação, que reduz a necessidade de trabalhadores, e a descentralização, com a produção espalhada em vários lugares, para cortar custos.
Nos anos 1970, a indústria automotiva americana teve outro grande choque, com a crise do petróleo e o aumento de concorrentes estrangeiros, de países como Alemanha e Japão. A partir daí, Detroit entrou em um processo de encolhimento e abandono progressivo, cujo ápice viria em 2013: a prefeitura decretou falência, pois não tinha mais como pagar as contas.
As mudanças econômicas foram seguidas de movimentos políticos. "Quando eu me mudei para cá, nos anos 1970, os republicanos eram muito fortes. Mas eles foram perdendo força desde então", conta Ronald Stockton, professor aposentado de ciência política da Universidade de Michigan, em uma conversa com a EXAME nos fundos de sua casa em Deaborn, cidade vizinha de Detroit.
"Na região oeste do estado, temos muitas pessoas de origem holandesa e mais conservadoras religiosas, que tendem a ser republicanas. Em Detroit, onde há a base industrial, as pessoas tendem a ser mais democratas", prossegue Stockton.
Ele comenta que na região de Detroit, há mais pessoas negras, que tendem a votar nos democratas, mas seu comparecimento sobe e desce conforme o apelo do candidato. "Quando Obama estava na cédula, o comparecimento foi alto, mas quando Hillary estava na disputa, ele caiu, e isso teve papel importante em sua derrota", comenta o professor.
Hillary perdeu para Trump no estado em 2016 por cerca de 10 mil votos de diferença.
"Você não precisa de 20% dos eleitores para mudar o resultado. Dois ou três por cento já podem fazer a diferença. Se Hillary tivesse vindo mais ao estado, dito 'oi, Michigan! Eu amo vocês', ela podia ter levado o estado, mas ela não fez. Esses pequenos fatores podem fazer a diferença", diz.
Stockton vê a cidade em seu melhor momento em alguns décadas, e conta uma história ilustrativa. “Uma vez, uns 20 anos atrás, tinha uma notícia no jornal: uma casa foi construída em Detroit. Em um ano inteiro, apenas uma casa foi construída. Aí colocaram o dono na primeira página do jornal", diz.
Como a cidade tinha muitas casas abandonadas, a prefeitura facilitou a venda de imóveis abandonados, a preços mais baixos. "Você podia comprar uma casa, colocar ela abaixo e fazer uma nova casa, ou criar um negócio. Gente muita rica começou a comprá-las e agora há empresas que possuem grandes terrenos em Detroit, que poderão virar fábricas ou galpões. Há muitos terrenos prontos para isso", diz o professor.
Um dos lugares onde isso vem ocorrendo é em Corktown, um bairro perto da estação de trem de Detroit. O lugar tinha forte presença da comunidade irlandesa há cem anos, mas entrou em decadência conforme foi sendo abandonado e ninguém mais queria viver ali. Agora, os preços começam a ficar proibitivos. Ali perto da estação, há vários prédios novos, que alternam moradias, instituições de ensino e escritórios, com uma arquitetura em linha com o estilo de prédios que vem se espalhando pelas cidades médias dos EUA: prédios mais baixos, com fachadas de vidro e metal e um pouco de cor.
Um estudo divulgado em julho pela universidade Florida Atlantic apontou que Detroit tem registrado uma das maiores altas nos preços de imóveis no país. O custo de algumas casas chegou a subir 40% de um ano para outro.
Stockton avalia que parte das melhorias tem relação com o amplo pacote de investimentos em infraestrutura aprovado pelo governo de Joe Biden no começo de sua gestão, para melhorar pontes e estradas e fomentar a transição energética. "Há um tremendo impacto quando você joga um trilhão de dólares na economia e diz ok, faça algo pela sua cidade", diz.
O estado tem alternado a preferência política nas eleições presidenciais desde os anos 1930. Nos anos 1960, houve três vitórias democratas. De 1972 a 1988, cinco vitórias republicanas em sequência. Depois, seis conquistas democratas, de 1992 (com Bill Clinton) a 2012 (com Barack Obama). Em 2016, ali houve vitória de Donald Trump e, em 2020, Biden venceu.
O estado é governado desde 2019 pela democrata Gretchen Whitmer. Ela foi reeleita em 2022 e ficará no cargo até 2027.
Do lado oeste de Michigan, em Grand Rapids, as ruas são menos desertas e mais arrumadas que em Detroit. A economia é mais diversificada, e a cidade, de 195 mil habitantes, segue o padrão comum no interior dos Estados Unidos: uma área central com algumas quadras, onde ficam órgãos públicos, escritórios e alguns bares e restaurantes, cercados de aglomerados de casas típicas americanas que se estendem por quilômetros.
Enquanto Detroit fez fortuna com carros, Grand Rapids cresceu com a indústria de móveis. "Por muito tempo, fabricávamos aqui móveis para as casas. Havia convenções do setor, as pessoas vinham para cá comprar e ver novidades. Mas as coisas mudaram, as fábricas foram para outras partes. No entanto, ainda fabricamos aqui muitos móveis para escritórios", conta Janet Korn, vice-presidente da Experience Grand Rapids, uma agência local de turismo.
Korn levou a EXAME para um passeio no Frederick Meijer Gardens, um espaço ao ar livre que combina parque, paisagismo e obras de arte, no modelo do Inhotim brasileiro, criado em 1995 com doações de Meier, um empresário que começou com um mercadinho na região, nos anos 1960, e depois criou uma rede de supermercados que o tornou bilionário.
Com a perda do espaço da indústria, Grand Rapids busca diversificar a economia de várias formas, e o turismo é uma delas. O setor de lazer e hospitalidade responde por cerca de 55 mil empregos, 10% dos postos de trabalho não-agrícolas da região, segundo dados do Departamento do Trabalho. Isso equivale a metade das vagas do setor industrial (112 mil). Serviços de educação e saúde também ganham força, e já empregam quase 100 mil habitantes locais.
Em Kent County, que inclui Grand Rapids, Trump venceu em 2016 e em Biden em 2020. Para o professor Doug Koopman, professor de política na Universidade Calvin, o perfil moderado dos eleitores e o peso da política local ajudam a explicar esse movimento pendular.
"Uma coisa que os observadores de outros países não percebem é o quão locais os partidos políticos são nos Estados Unidos. Michigan tem 83 condados, e o Partido Democrata de um condado é ligeiramente diferente do de outro. Do lado republicano, a mesma coisa", diz.
Koopman explica que no oeste de Michigan, os dois partidos tradicionalmente mantêm uma postura mais moderada, independentemente das ondas políticas, e que essa maior ponderação se reflete no perfil dos candidatos. "Apesar do contexto nacional, você pode encontrar muitos democratas pró-vida (antiaborto) no Oeste de Michigan, e muitos republicanos que defendem a proteção ambiental e direitos trabalhistas", aponta.
"Como cientista político que vive e trabalha aqui, é divertido. É um lugar interessante para trabalhar”, brinca.
O professor explica ainda que os eleitores também têm mudado de partido na região. "Muitos eleitores de maior escolaridade migraram do Partido Republicano para o Democrata, e muitos brancos da classe trabalhadora deixaram os democratas para apoiarem republicanos", afirma.
Ele destaca que muitos latinos de segunda ou terceira geração (filhos ou netos de imigrantes) estão ficando mais propensos a votarem em republicanos, enquanto muitas pessoas com nível superior e maior envolvimento religioso estão migrando para os democratas, por os considerarem mais abertos a debates.
É nessa miscelânea política e econômica, onde o passado nunca passou de verdade, que Kamala Harris e Donald Trump precisarão angariar votos. Uma coisa é certa: vencer por lá é sinal alvissareiro para qualquer candidato. Desde 2008, quem ganhou no Michigan, ganhou também a presidência.