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Transição energética e concorrência: vale impor imposto seletivo no GN e subsidiar o GLP?

Não é segredo que o elevado preço da energia, apesar do baixo custo, tira a competitividade das empresas

Não é segredo que o elevado preço da energia, apesar do baixo custo, tira a competitividade das empresas (shotsstudio/envato)
Cristiane Schmidt

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 17 de outubro de 2024 às 10h13.

Não é segredo que o mundo está diante de um desafio climático1. Basta acompanhar os jornais. Também não é segredo que o elevado preço da energia, apesar do baixo custo2, tira a competitividade das empresas. É, aliás, um dos elementos que compõe o elevado “custo-Brasil”.

É um mistério, entretanto, o porquê de o Brasil ter políticas públicas incongruentes. Parece não haver um plano com um único endereçamento – com soluções de longo prazo – para problemas devidos às falhas nas estruturas de mercado, aos subsídios e benefícios fiscais incoerentes e às condições comerciais indigestas para o consumidor, que impactam o seu bem-estar e a produtividade do país. Os ministros não conversam e, sem um líder no executivo, não há diálogo técnico com o legislativo. Daí a miríade de leis e de proposituras incompatíveis.

O Brasil poderia ser um paradigma, dadas as suas matrizes energética e elétrica limpas, vis-à-vis o mundo (49%x15% e 85%x28%3, respectivamente), mas não é. Dificilmente o país alcançará a meta de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) líquidas zero até 2050. Se nem internamente há consensos sobre quais ações tomar, ser líder mundial é meta desafiadora.

Para além dos desmatamentos e queimadas, duas das principais fontes de emissão de GEE, e das falhas ambientais nas cidades; a frota de caminhão das empresas e a de ônibus das prefeituras (à diesel), as termoelétricas (à carvão), os geradores das indústrias (à diesel) e o uso de lenha para cocção nos lares poderiam ser fruto de um plano energético de descarbonização – consentâneo, integrando todas as fontes de energia e consistente com as políticas tributária e concorrencial.

A lenha, o carvão e o diesel fazem parte da realidade brasileira abundantemente. O Gás Natural (GN), que contamina menos do que outros combustíveis fósseis4, o etanol, o biodiesel e o biometano5 são os combustíveis da transição energética 6 para os próximos 20 anos, especialmente porque o hidrogênio verde tem produção incipiente.

Segundo o IBGE, 20% da energia para cocção em fogões residenciais é à lenha, que emana resíduos tóxicos, prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O carvão e o diesel, por sua vez, são utilizados em 13% e 3%, respectivamente, nas usinas termoelétricas7, que, em época de seca, precisam ser acionadas, mesmo com o aumento na oferta das fontes solar e eólica8, que, por sofrerem intermitência, não resolvem o problema da escassez. Além disso, os polos industriais, o transporte coletivo urbano e a frota de caminhões usam o diesel como sua principal fonte.

Em todas essas situações, o GN9e o biometano, quando possível, são insumos para descarbonizar a matriz energética. Neste sentido, impor imposto seletivo(IS) ao GN vai de encontro com a alteração dada pela EC132/2023, par. 3º, art. 145, em que a defesa pelo meio ambiente passou a ser um dos princípios do Sistema Tributário Nacional.

Como o GN melhora (e não piora!) as condições atuais do meio ambiente, gerando uma externalidade positiva (e não negativa!) para a atmosfera, o governo deveria incentivar o seu uso e não fazer o contrário. Ou seja, o GN, para além da sua já elevada carga tributária (que deve permanecer a mesma, segundo o art.169 do PLP68/2410), não se encaixa hoje na definição dada pelo inciso VIII, art. 153, e pelo par 6º da EC132, ou mesmo pelo PLP68/2411, que indica quando um bem pode ser objeto doIS12. Aliás, a incongruência legal vai além, quando se nota que a LC 194/2022 determinou a essencialidade do GN. Ora, se é essencial, não é indesejável.

Hoje, em valores aproximados, 24% do preço final do GN refere-se à carga tributária e 50%, ao valor da molécula (fixada pelo produtor quase monopolista, em ambiente de um jogo de liderança de preço 13 ). Retardar a transição energética é o que o país almeja?

Em sentido inverso à imposição do IS ao GN, isto é, entendendo o papel do GN como meio da evolução energética, tem-se o decreto no12.153 de 26/08/24 que, corretamente, fomenta o aumento de sua oferta, seja obrigando que haja menor reinjeção de GN (quando da extração do petróleo), seja facilitando a importação de GNL. Neste aspecto, vale observar que, o quase monopólio da Petrobras14na produção e no refino (graves gargalos) deixa o preço da molécula do GN elevado na origem. O CADE endereçou esta questão, mas voltou atrás15. Uma pena, pois inserir maior competição no upstream segue sendo a melhor política para baratear o GN no downstream. Além disso, uma redução de tributo na origem poderia ser financiada por programas existentes, dentro de um plano nacional de descarbonização, na linha do Combustível do Futuro (PLP 528/2020).

Outra iniciativa a ser analisada com atenção é o subsídio ao Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), um combustível que compete com o GN em alguns nichos e é mais poluente do que o GN. O PLP 3335/24 altera a Lei 14.237/21 (Auxílio GLP). O programa hoje tem custo anual de R$3,5 milhões e foca em 5,6 milhões de famílias, com renda per capita mensal inferior a ½ salário-mínimo. O subsídio atual é bimestral, com pagamento monetário e refere-se à 50% do preço do botijão de GLP 13kg. A ideia é alcançar a 21 milhões de famílias até 2026 (custo anual passaria para R$14 milhões), permitindo que haja descontos junto aos revendedores na compra do botijão.

Introduzir tecnologias mais limpas para cocção é tema prioritário para o combate à pobreza energética no Brasil (como é o “dar luz para todos”). O erro não é considerar o GLP, mas desconsiderar o GN em locais onde há (ou poderia haver) oferta por GN. Neste aspecto, seria anelado alcançar dois objetivos concomitantemente: diminuir a pobreza energética e estimular a transição energética, considerando as melhores opções economicamente viáveis, que inclui o GN. A solução, logo, passaria pelo uso conjunto dos dois gases em tela.

Essa forma de endereçar a substituição da lenha minimizaria um possível problema antitruste. De fato, com subsídio governamental, as empresas de GLP podem fazer subsídios cruzados entre seus nichos de mercado e afetar a competição com o GN onde estes competem. Isto porque políticas tributárias e de subsídios alteram os incentivos dos agentes econômicos, podendo ensejar em ações anticompetitivas, distorcendo a concorrência. O CADE ou a ANP estão atentas?

Em suma, o Brasil poderia ser um protagonista mundial na condução de uma transição energética sustentável, acessível e justa. Para isso teria que ter um plano estratégico nacional único e holístico, considerando o bem-estar do cidadão e a produtividade da economia, que é afetada pela estrutura (produtor quase monopolista) e pela concorrência dos mercados (subsídio no GLP) e pelo sistema tributário (IS no GN) O tripé “tributário, energético e concorrencial” precisa estar em harmonia para que o país possa navegar bem, especialmente nos mares turbulentos de hoje.

Inquestionavelmente a Reforma Tributária será benéfica para o país, mas esta não pode colidir com outros objetivos legítimos de políticas. Por isso, ao menos enquanto o Brasil ainda fizer uso expressivo de carvão, diesel e lenha, não há razão econômica e social para o GN ter IS. Será um pecado impor o imposto do pecado ao GN.

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Não é segredo que o mundo está diante de um desafio climático1. Basta acompanhar os jornais. Também não é segredo que o elevado preço da energia, apesar do baixo custo2, tira a competitividade das empresas. É, aliás, um dos elementos que compõe o elevado “custo-Brasil”.

É um mistério, entretanto, o porquê de o Brasil ter políticas públicas incongruentes. Parece não haver um plano com um único endereçamento – com soluções de longo prazo – para problemas devidos às falhas nas estruturas de mercado, aos subsídios e benefícios fiscais incoerentes e às condições comerciais indigestas para o consumidor, que impactam o seu bem-estar e a produtividade do país. Os ministros não conversam e, sem um líder no executivo, não há diálogo técnico com o legislativo. Daí a miríade de leis e de proposituras incompatíveis.

O Brasil poderia ser um paradigma, dadas as suas matrizes energética e elétrica limpas, vis-à-vis o mundo (49%x15% e 85%x28%3, respectivamente), mas não é. Dificilmente o país alcançará a meta de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) líquidas zero até 2050. Se nem internamente há consensos sobre quais ações tomar, ser líder mundial é meta desafiadora.

Para além dos desmatamentos e queimadas, duas das principais fontes de emissão de GEE, e das falhas ambientais nas cidades; a frota de caminhão das empresas e a de ônibus das prefeituras (à diesel), as termoelétricas (à carvão), os geradores das indústrias (à diesel) e o uso de lenha para cocção nos lares poderiam ser fruto de um plano energético de descarbonização – consentâneo, integrando todas as fontes de energia e consistente com as políticas tributária e concorrencial.

A lenha, o carvão e o diesel fazem parte da realidade brasileira abundantemente. O Gás Natural (GN), que contamina menos do que outros combustíveis fósseis4, o etanol, o biodiesel e o biometano5 são os combustíveis da transição energética 6 para os próximos 20 anos, especialmente porque o hidrogênio verde tem produção incipiente.

Segundo o IBGE, 20% da energia para cocção em fogões residenciais é à lenha, que emana resíduos tóxicos, prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O carvão e o diesel, por sua vez, são utilizados em 13% e 3%, respectivamente, nas usinas termoelétricas7, que, em época de seca, precisam ser acionadas, mesmo com o aumento na oferta das fontes solar e eólica8, que, por sofrerem intermitência, não resolvem o problema da escassez. Além disso, os polos industriais, o transporte coletivo urbano e a frota de caminhões usam o diesel como sua principal fonte.

Em todas essas situações, o GN9e o biometano, quando possível, são insumos para descarbonizar a matriz energética. Neste sentido, impor imposto seletivo(IS) ao GN vai de encontro com a alteração dada pela EC132/2023, par. 3º, art. 145, em que a defesa pelo meio ambiente passou a ser um dos princípios do Sistema Tributário Nacional.

Como o GN melhora (e não piora!) as condições atuais do meio ambiente, gerando uma externalidade positiva (e não negativa!) para a atmosfera, o governo deveria incentivar o seu uso e não fazer o contrário. Ou seja, o GN, para além da sua já elevada carga tributária (que deve permanecer a mesma, segundo o art.169 do PLP68/2410), não se encaixa hoje na definição dada pelo inciso VIII, art. 153, e pelo par 6º da EC132, ou mesmo pelo PLP68/2411, que indica quando um bem pode ser objeto doIS12. Aliás, a incongruência legal vai além, quando se nota que a LC 194/2022 determinou a essencialidade do GN. Ora, se é essencial, não é indesejável.

Hoje, em valores aproximados, 24% do preço final do GN refere-se à carga tributária e 50%, ao valor da molécula (fixada pelo produtor quase monopolista, em ambiente de um jogo de liderança de preço 13 ). Retardar a transição energética é o que o país almeja?

Em sentido inverso à imposição do IS ao GN, isto é, entendendo o papel do GN como meio da evolução energética, tem-se o decreto no12.153 de 26/08/24 que, corretamente, fomenta o aumento de sua oferta, seja obrigando que haja menor reinjeção de GN (quando da extração do petróleo), seja facilitando a importação de GNL. Neste aspecto, vale observar que, o quase monopólio da Petrobras14na produção e no refino (graves gargalos) deixa o preço da molécula do GN elevado na origem. O CADE endereçou esta questão, mas voltou atrás15. Uma pena, pois inserir maior competição no upstream segue sendo a melhor política para baratear o GN no downstream. Além disso, uma redução de tributo na origem poderia ser financiada por programas existentes, dentro de um plano nacional de descarbonização, na linha do Combustível do Futuro (PLP 528/2020).

Outra iniciativa a ser analisada com atenção é o subsídio ao Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), um combustível que compete com o GN em alguns nichos e é mais poluente do que o GN. O PLP 3335/24 altera a Lei 14.237/21 (Auxílio GLP). O programa hoje tem custo anual de R$3,5 milhões e foca em 5,6 milhões de famílias, com renda per capita mensal inferior a ½ salário-mínimo. O subsídio atual é bimestral, com pagamento monetário e refere-se à 50% do preço do botijão de GLP 13kg. A ideia é alcançar a 21 milhões de famílias até 2026 (custo anual passaria para R$14 milhões), permitindo que haja descontos junto aos revendedores na compra do botijão.

Introduzir tecnologias mais limpas para cocção é tema prioritário para o combate à pobreza energética no Brasil (como é o “dar luz para todos”). O erro não é considerar o GLP, mas desconsiderar o GN em locais onde há (ou poderia haver) oferta por GN. Neste aspecto, seria anelado alcançar dois objetivos concomitantemente: diminuir a pobreza energética e estimular a transição energética, considerando as melhores opções economicamente viáveis, que inclui o GN. A solução, logo, passaria pelo uso conjunto dos dois gases em tela.

Essa forma de endereçar a substituição da lenha minimizaria um possível problema antitruste. De fato, com subsídio governamental, as empresas de GLP podem fazer subsídios cruzados entre seus nichos de mercado e afetar a competição com o GN onde estes competem. Isto porque políticas tributárias e de subsídios alteram os incentivos dos agentes econômicos, podendo ensejar em ações anticompetitivas, distorcendo a concorrência. O CADE ou a ANP estão atentas?

Em suma, o Brasil poderia ser um protagonista mundial na condução de uma transição energética sustentável, acessível e justa. Para isso teria que ter um plano estratégico nacional único e holístico, considerando o bem-estar do cidadão e a produtividade da economia, que é afetada pela estrutura (produtor quase monopolista) e pela concorrência dos mercados (subsídio no GLP) e pelo sistema tributário (IS no GN) O tripé “tributário, energético e concorrencial” precisa estar em harmonia para que o país possa navegar bem, especialmente nos mares turbulentos de hoje.

Inquestionavelmente a Reforma Tributária será benéfica para o país, mas esta não pode colidir com outros objetivos legítimos de políticas. Por isso, ao menos enquanto o Brasil ainda fizer uso expressivo de carvão, diesel e lenha, não há razão econômica e social para o GN ter IS. Será um pecado impor o imposto do pecado ao GN.

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