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Os desafios do "Enem dos Concursos"

Concurso Nacional Unificado apresenta uma alteração relevante na maneira de recrutar servidores públicos

Concurso Nacional Unificado apresenta uma alteração relevante na maneira de recrutar servidores públicos (kali9/Getty Images)
Concurso Nacional Unificado apresenta uma alteração relevante na maneira de recrutar servidores públicos (kali9/Getty Images)
Rafael Leite
Rafael Leite

Publicado em 6 de outubro de 2023 às, 13h22.

Última atualização em 6 de outubro de 2023 às, 13h59.

A proposta recente do Concurso Nacional Unificado pelo governo federal, apelidado de "Enem dos Concursos", apresenta uma alteração relevante na maneira de recrutar servidores públicos. A prova será realizada em um único dia, sob a coordenação do Ministério de Gestão e Inovação, e terá aplicação simultânea em diversas cidades. A avaliação será dividida em duas fases: a primeira consistirá em uma prova padrão para todos os participantes, enquanto a segunda compreenderá diferentes provas destinadas a avaliar candidatos separados por "blocos temáticos". Os órgãos que adotarem este modelo poderão incluir avaliações de titulação acadêmica e/ou experiência profissional anterior, atribuindo as pontuações que considerarem adequadas. O objetivo do governo é  preencher mais de 6 mil posições em variados órgãos, abrangendo diversas carreiras. O modelo sugerido visa superar limitações do sistema atual, mas, como toda inovação, gera questionamentos sobre sua eficácia, aplicabilidade e possíveis repercussões. 

A concepção de um concurso unificado não é casual. Ela emerge como tentativa de superar um método de recrutamento desarticulado e, em diversos aspectos, defasado. A proposta de racionalização possui méritos. Em primeiro lugar, aponta na direção de racionalizar a gestão da força de trabalho no serviço público federal, atualmente impactada pela fragmentação e multiplicação das carreiras. Ao unificar o recrutamento e categorizar as avaliações por "grupos de carreiras", o governo avança no sentido de adotar abordagens mais transversais da gestão de recursos humanos. Essa avaliação é reforçada por declarações de membros do governo que demonstram a intenção de consolidar o número de carreiras. 

Em segundo lugar, ao centralizar a organização e realização de certames, é possível que economias de escala sejam alavancadas. No formato atual, a organização de cada concurso implica em custos de planejamento para a administração pública, e também em aspectos logísticos, administrativos e financeiros assumidos pelos candidatos com o pagamento das taxas de inscrição. Nesse sentido, a unificação pode representar uma economia direta com a racionalização de procedimentos no interior da administração pública, bem como liberar recursos privados que hoje alimentam a indústria concurseira.  

Esse é, aliás, um dos pontos mais interessantes da proposta do governo: o combate ao "comportamento concurseiro". Muitos candidatos, incentivados pela busca por remunerações cada vez mais atrativas, alternam entre diversos concursos sem um foco definido de atuação. Tal dinâmica culmina, ao longo do tempo, em um contingente de servidores públicos em funções não alinhadas às suas aptidões ou habilidades, e que não investem no desenvolvimento de competências úteis ao desempenho de seus cargos. Frequentemente, esses indivíduos ascendem no serviço público direcionando-se a carreiras de maior remuneração, tornando-se profissionais cuja principal habilidade reside em preparar-se para concursos, e não necessariamente em solucionar desafios públicos. Trata-se de um comportamento e traço de personalidade que compromete os valores e a qualidade do serviço público.  

O governo ainda sustenta que a iniciativa visa incrementar a diversidade no serviço público ao democratizar o acesso ao exame, que ocorrerá simultaneamente em várias localidades. Adicionalmente, com um único pagamento, os candidatos poderão concorrer a múltiplas vagas, favorecendo uma maior equidade econômica entre eles. 

Os objetivos são louváveis. Entretanto, as questões associadas aos concursos públicos são amplamente reconhecidas, e a prova unificada não parece abordar essencialmente nenhuma delas. As avaliações, em muitos casos, não guardam pertinência com as atividades desempenhadas pelos servidores, tornando-se instrumentos que pouco predizem sobre o potencial desempenho dos candidatos em funções públicas. Via de regra, as provas são avaliações de teor enciclopédico, demandando extenso tempo de preparação – um tempo que, geralmente, apenas candidatos de condições socioeconômicas privilegiadas podem dispor. 

A literatura sugere que, em determinadas circunstâncias, seleções centralizadas podem influenciar positivamente a qualidade do serviço público. Contudo, as evidências atualmente disponíveis são limitadas e, geralmente, aludem à adoção de processos avaliativos em larga escala para medir conhecimentos e habilidades claramente definidas. Estes, por sua vez, demonstram uma correlação significativa com o desempenho em atividades profissionais específicas, como no caso de professores e diretores escolares. Em situações como essa, há uma matriz de competências bem definida. A partir dela, determinam-se métodos de avaliação precisos, capazes de identificar os candidatos que detêm as competências diretamente associadas ao seu futuro desempenho profissional. 

Todavia, o concurso proposto pelo governo segue diretrizes distintas. É grande a variedade dos cargos e não há indícios de elaboração de uma matriz de competências comum. Também permanece ambíguo como as provas avaliarão as habilidades compartilhadas por profissionais de diferentes carreiras e como serão definidos os mencionados "blocos temáticos". 

Isso suscita uma reflexão crítica acerca da essência da proposta em questão. Atualmente, as metodologias mais avançadas de recrutamento e seleção tendem a priorizar processos individualizados e adaptados ao perfil de cada cargo. Reconhece-se, de forma crescente, que uma eficaz avaliação de competências demanda métodos avaliativos que identifiquem, nos candidatos, as habilidades essenciais para o desempenho de funções específicas. Quanto maior a especificidade de um processo avaliativo, mais onerosa tende a ser sua implementação, justificando assim a aplicação de mecanismos avaliativos intensivos a um contingente reduzido de candidatos. Neste contexto, um formato padronizado e aplicado em escala, como o sugerido pelo concurso unificado, poderia divergir das abordagens mais contemporâneas em matéria de recrutamento e seleção. 

Estamos, portanto, diante de um potencial paradoxo. Seria inviável harmonizar os possíveis benefícios e desafios associados ao conceito de recrutamento centralizado? Não necessariamente. A solução poderia emergir da combinação de ambas as estratégias. O exame unificado poderia atuar como uma primeira triagem, identificando candidatos que demonstrassem competências fundamentais e transversais, tais como capacidade analítica, numeracia e interpretação de dados. Em fases posteriores, mecanismos de seleção mais detalhados e segmentados poderiam ser empregados, visando avaliar a compatibilidade dos candidatos com determinados cargos ou responsabilidades, incorporando instrumentos como entrevistas, tarefas práticas e treinamentos específicos. Tal abordagem combinada capitalizaria as vantagens de ambos os enfoques: a economia de escala de um processo centralizado e a acurácia das seleções individualizadas. 

Experiências internacionais destacam o emprego de mecanismos de certificação em larga escala como etapas preliminares para seleções mais rigorosas. Existem diversos exemplos de certificações de elevada qualidade empregadas como fases eliminatórias em processos de recrutamento e seleção, como exames que avaliam competências linguísticas (TOEFL, IELTS, etc) ou que mensuram habilidades técnicas (como o CPA-10). Certificações desse tipo poderiam ser adotadas como um critério avaliativo inicial para candidatos, porém não como o principal instrumento de avaliação. Aventar esta modalidade de avaliação não seria novidade. A Lei nº 13.846/2019, estipula critérios para a seleção de dirigentes de entidades gestoras do regime próprio de previdência social em estados e municípios, enfatizando, entre outros pontos, a certificação profissional. Em 2015, o MEC anunciou a criação do Programa Nacional de Certificação de Diretores Escolares, iniciativa que, infelizmente, não teve prosseguimento. Modelos semelhantes em países como México e Equador exibiram resultados encorajadores. 

Em síntese, ainda que a proposta do Concurso Nacional Unificado represente uma tentativa ambiciosa de atualizar e aperfeiçoar o recrutamento no serviço público brasileiro, sua concretização exige prudência, análise crítica e, potencialmente, modificações. Uma estratégia progressiva, iniciando talvez com projetos experimentais em áreas específicas, poderia proporcionar insights relevantes e assegurar que a iniciativa combine inovação e eficácia.