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Investidores querem abre alas no Centro do Rio se populismo não atravessar

O Centro do Rio, que afundou ainda mais na pandemia, tornando-se um bairro fantasma depois de 20 horas, tem saída, desde que seja evitado o populismo

Primeira fotografia feita na América do Sul, em 17 de janeiro de 1840, do Paço Imperial, atribuída ao francês Louis Comte (Coriolano Gatto/Reprodução)
Primeira fotografia feita na América do Sul, em 17 de janeiro de 1840, do Paço Imperial, atribuída ao francês Louis Comte (Coriolano Gatto/Reprodução)
CG
Coriolano Gatto

Publicado em 20 de setembro de 2021 às, 08h55.

Coriolano Gatto

A melhor imagem da decadência do Centro do Rio, a outrora capital financeira do país até os anos 1980, é exibida na estátua do General Osório, datada de 1894, em homenagem ao herói da Guerra do Paraguai. Obra do escultor Rodolfo Bernardelli, o monumento, restaurado em 2011, começa a ser dilapidado no início da recessão de 2014 e atualmente perdeu todo o gradil e a espada, além do sumiço das letras e flores em bronze e das balas de canhão. É uma vergonheira sem tamanho. Na mesma Praça XV, a 30 passos da estátua, se encontra a primeira fotografia feita na América do Sul, em 17 de janeiro de 1840, do Paço Imperial, atribuída ao francês Louis Comte. O vidro que a protege foi pichado por vândalos, o que torna quase impossível entender a legenda e captar a imagem histórica. O Paço Imperial, sede do Império, continua a escapar das pichações, e a casa onde morou Dona Maria I, mãe de Dom João VI, a 50 metros, está protegida por tapume metálico, o que atrapalha a visão da construção. Curiosamente, a poucos metros dali se encontra um dos segredos mais guardados do país. São parte dos restos mortais de Pedro Álvares Cabral − o navegador português que chegou nesta terra em 1500 −, no subterrâneo da antiga Catedral da Sé, a Igreja Nossa Senhora do Carmo. O Centro do Rio, que afundou ainda mais na pandemia, tornando-se um bairro fantasma depois de 20 horas, tem saída, desde que seja evitado o populismo. É uma combinação de intervenções heterodoxas com o uso de soluções de mercado, que possam atrair as mesmas incorporadoras, as quais voltaram a erigir prédios de bom padrão na cidade − da Zona Sul à Zona Norte − e no próprio Porto Maravilha.

Aos números: cerca de metade dos prédios do Centro está vazia, sendo que o Município do Rio é dono de 353 deles, boa parte sem uso.

 

Agora, vamos mergulhar numa história digna de Franz Kafka: das 7 mil titularidades do governo municipal, 1.100 pertencem ao Distrito Federal e ao Estado da Guanabara, sendo o primeiro extinto em 1960 com a criação de Brasília, e o segundo em 1975 em razão da fusão com o Estado do Rio. Os dados são do advogado Pedro Duarte, 30 anos, formado pela PUC-Rio e vereador do Rio (Partido Novo).
O Projeto Reviver Centro, ao que tudo indica, pode ser uma boa solução, desde que não haja exagero na adoção de políticas públicas equivocadas. A moradia social é uma boa medida para mitigar o gravíssimo problema de habitação da classe de renda baixa e de quem está acima de 65 anos. Cidades europeias adotaram modelo semelhante, a exemplo de alguns centros urbanos americanos. Conservadores criticam a ideia, afirmando que Paris, por exemplo, vive uma horda de decadência de costumes e de imigrantes pobres. Mas, em Londres, berço do capitalismo, foi adotado o modelo no entorno do Museu Imperial da Guerra. As habitações abrigam de jovens estudantes que não podem pagar os caros alojamentos de uma London School até estrangeiros de baixíssima renda. São esses habitantes que tomam conta das edificações, com esmero.

É evidente que não pode haver excessos. A ocupação de prédios públicos pode afastar os investidores, que vão gerar renda e emprego de alto nível, o que significa aumento da arrecadação. É um truísmo: mais impostos significam investimentos em saúde, educação, segurança e cultura. Da mesma forma, é de uma aberração proibir que os pobres possam ter acesso a uma moradia. A ideia de isentar o ISS de todo o Centro é bom para alguns donos de imóveis, mas temerária  para o Município. Isenções fiscais amplas, como aquelas que ocorreram no Espírito Santo, com o famoso Fundap, anos 1990, e com o Estado do Rio, fim da década passada e início desta, é o modelo ideal para a prisão de parlamentares, como em terra capixaba, antes da mudança enérgica comandada por Paulo Hartung, e de governadores, no caso do Rio. É uma fábrica de corrupção e de inanição na capacidade de investimento do setor público.

Ainda que criticado por parte do setor privado, o Comitê Gestor do Reviver Centro, formado exclusivamente por autoridades municipais, tem o apoio de um grande fundo imobiliário. “Empresário não entende disso. Sabe ganhar dinheiro. O projeto Reviver Centro é muito bom, e é positivo que a Prefeitura seja a responsável pela administração”, disse o experiente gestor.

As isenções no âmbito do chamado distrito do conhecimento, o que abrange de agências de publicidade a livrarias, empresas de tecnologia e startups, até o afroempreendedorismo (a íntegra da Lei 6.999, de 14 de julho, está na web), é um avanço para estimular a cultura e o seu entorno, uma das grandes vocações do Rio. A inclusão se faz presente com a ampliação a minorias sociais e de gênero. Não se trata de um benefício do Estado, mas de uma ideia liberal, que aceita no mesmo quadrado todas as convicções ideológicas de pensamento, de classe e de livre escolha da sua opção sexual.

A solução de mercado, defendida por empresários, analistas independentes e por Pedro Duarte, será um atrativo para o grande investidor. Quem, por hipótese, transformar quatro andares de um prédio comercial no Centro em residencial, devidamente modificado, ganhará um bônus para ser investido, por exemplo, em Copacabana, Zona Sul do Rio. Esse bônus poderá ser negociado em um mercado secundário, de tal forma que haverá interessados na compra e na venda dos títulos, cuja valorização será determinada por empresas especializadas. Haverá a regulação do Município para evitar aquilo que um grande economista definiu em 1975 sobre a Praça XV: um covil de ladrões. Ali ficava situada a Bolsa de Valores do Rio, que negociava de tudo, até a famosa Merposa (Merda em Pó Sociedade Anônima). A moralidade só foi possível com a criação da CVM, em 1976, a partir da Lei das S/A, e a autarquia passou a ter o poder de polícia, a exemplo de sua congênere nos Estados Unidos, a SEC, criada em 1934, após a rapinagem que desembocou na grande crise de 1929.

A simbiose entre políticas públicas bem engendradas e o estímulo aos grandes players pode impulsionar, em poucos anos, bilhões de reais em investimentos para o decadente Centro do Rio, que tem prédios desocupados e de grande valor histórico, como os da icônica Travessa do Comércio, antes cenário para novelas e documentários de época.

A cidade precisa desafiar uma máxima do jornalista e escritor Millôr Fernandes, carioca genuíno, inventor do frescobol, ipanemense de carteirinha, que, em tom de blague, dizia: “Roma não se fez em um dia, mas o Rio foi destruído em dez anos” (Millôr Definitivo, 1994). Quem conheceu Millôr sabe que a frase era um alerta às autoridades, como um alarme disparado em uma praia para espantar os banhistas de um tubarão faminto.

Esse novo marco, com o apoio de diferentes correntes políticas, pode levar o Rio à recuperação, no momento em que os setores do comércio e de serviços − a grande vocação da capital fluminense − dão sinais de nítida retomada. Basta o poder público não atrapalhar quem quer investir alto na cidade. O Brasil tem pressa e torce pela recuperação da sua antiga capital, símbolo maior da cultura e da generosidade, do tempo da poesia de Vinicius de Moraes, da música do maestro Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, da compositora e regente Chiquinha Gonzaga, da médica Nise da Silveira, da atriz Leila Diniz, da engenheira química Iramaya Queiroz Benjamin (líder do Comitê Brasileiro da Anistia), do contista Rubem Fonseca, do arquiteto Oscar Niemeyer, da empreendedora Regine Feigl (carioca por adoção) e dos geniais irmãos engenheiros Antonio e André Rebouças.

Esse Rio generoso precisa voltar, como na música “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, cuja escultura está eternizada no Leme, Posto 1 de Copacabana.

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