Casamento Bolsonaro-Guedes: fruto unirá qualidades ou defeitos dos pais?
Será que o casamento propalado como a salvação do Brasil dará vida a uma criatura com o bom senso econômico do presidente e o tino político do economista?
Da Redação
Publicado em 12 de novembro de 2018 às 12h29.
Última atualização em 12 de novembro de 2018 às 14h36.
Reza a lenda que Isadora Duncan propôs a Bernard Shaw gerarem um filho. A ideia seduziu a dançarina porque a junção de sua beleza majestosa com a inteligência ímpar do dramaturgo traria à luz um rebento com o dobro de qualidades dos genitores. Demonstrando a agudeza de sempre, Shaw baixou o assanhamento da moça ao lembrar que o descendente poderia igualmente herdar a beleza do pai e a inteligência da mãe. Nunca saberemos se o arroubo de lucidez produziu algum arrependimento, mas a união acabou não avançando. Essa anedota serve de guia para meditar sobre os frutos que poderão sair do casamento que une Jair Bolsonaro e Paulo Guedes .
O presidente eleito frequentou Brasília por décadas sem ter construído ou ajudado a construir nada relevante, pelo contrário. Lançou-se como o único candidato de oposição ao petismo com credenciais para limpar a estrebaria do Planalto Central, manipulando com destreza a fúria de pessoas de perfil moderado que normalmente rejeitariam o seu estilo e suas opiniões se não estivessem fartas da alternativa.
Ao percorrer essa avenida, o capitão logrou passar ao largo das questões econômicas que são as mais importantes para definir o futuro do país. Disse que seguiria uma agenda ortodoxa para fazer um contraponto ao PT e trazer para si a simpatia do empresariado, mas ainda é difícil saber se a conversão ao liberalismo foi para valer.
A esquerda populista latino-americana faz sucesso junto ao público vendendo a ideia de que tudo é de graça. Na ausência de normas civilizadas para disciplinar os debates, é praticamente impossível derrotá-los eleitoralmente a partir de um discurso razoável. Bolsonaro encontrou uma forma de driblar o problema, fazendo uma contraposição eficaz sem explicitar temas desagradáveis. Como ele passou quase três décadas nos porões do Nereu Ramos, sabe bem onde apertam os calos do eleitorado. O baixo clero do Congresso é talvez a melhor escola para conhecer o Brasil, mas, infelizmente, o liberalismo do século 19 não faz parte da grade.
Bolsonaro sabe que somos um povo que adora as boquinhas oferecidas pelo Estado paquidérmico. Entende que é preciso cuidar de si e dos companheiros porque todos são favoráveis ao ajuste desde que ele afete o bolso dos outros. Sob a orientação dos chefões, é na selva do baixo clero que as corporações lutam por pedaços de carniça, praticando o toma-lá-da-cá que produz os empregos de mentira, as aposentadorias precoces e generosas, os subsídios, os tabelamentos de preços, as isenções de impostos, os Refis, os financiamentos baratos, as tarifas alfandegárias, as concessões de monopólios e cartórios, as verbas carimbadas e por aí vai. Nesse Brasil em miniatura, o espaço para as ideias que Paulo Guedes aprendeu nos EUA é quase inexistente.
O presidente aproveitou a oportunidade oferecida pelas lambanças do establishment político para se alavancar, evitando discutir as maldades necessárias para salvar o país. Açulou o “nós contra eles” e, aos poucos, aglutinou em torno de si uma maioria que, se perguntada, provavelmente votaria a favor de todas as distorções que emperram a economia – pesquisas sugerem isso.
Para reforçar a zaga, chamou “Postos Ipiranga”, tomando cuidado para não encher demais a bola deles ao fazer questão de frisar que “Deus capacita os escolhidos”. Ora, se Bolsonaro é obra do Divino, é elementar concluir que os que se opõem a ele só podem ser cria do Tinhoso, facilitando a escolha. Nesse mundo fantástico não é necessário fazer contas.
Os improvisos que caracterizaram a trajetória de Bolsonaro ao Palácio da Alvorada sempre foram explícitos. Ninguém fez questão de elaborar e debater amplamente um plano estratégico para governar o país. A ideia era ganhar a eleição e depois descobrir o que fazer. A Folha de São Paulo publicou uma matéria excelente do jornalista Igor Gielow sobre os bastidores da campanha no primeiro domingo de setembro passado. A história começava com a seguinte pérola do então candidato ao senado Major Olímpio: “Isso aqui tem tudo para dar errado. Talvez por isso esteja dando certo até aqui”.
Naquele momento o dólar mirava os R$ 4,20 porque quando as coisas têm “tudo para dar errado” o mercado fica assustado. As gambiarras da campanha e a rejeição expressiva tornavam Bolsonaro um candidato frágil no segundo turno, elevando as chances de vitória do PT. Os temores eram ratificados por pesquisas de opinião que captavam fielmente os receios do eleitorado. Quando o bode representado por Haddad foi tirado da sala, os ativos financeiros reagiram positivamente, mais pela eliminação do risco de vitória do partido que arruinou o país do que por uma crença cega em Bolsonaro.
Em tese, o casamento de Bolsonaro com Paulo Guedes pode dar certo. De um lado, o analfabetismo econômico do presidente é emendado pela sabedoria do “Chicago boy”. De outro, o utopismo meio ingênuo do economista é temperado pela experiência em Brasil profundo do militar.
Que seja mesmo assim, mas muitos no mercado evitam comprar a ideia pelo valor de face enquanto não surgirem evidências mais concretas de que a dobradinha mandará bem. A turma que se viu forçada a torcer pelo capitão no segundo turno respira com certo alívio, mas agora que as eleições são águas passadas o busílis é outro.
Daqui para frente as dúvidas são saber qual é a equipe, qual o plano, quais as prioridades, quem manda, quem obedece, quem organiza, etc. A partir de agora o acúmulo de tropeços começa a trazer à mente um pesadelo análogo ao que atormentou Bernard Shaw no passado. Será que o casamento propalado como a salvação do Brasil dará vida a uma criatura com o bom senso econômico do presidente e o tino político do economista? É cedo para julgar, mas as declarações infelizes, as escaramuças com a imprensa, a atitude de confronto em relação ao Congresso e a ideia de que é preciso reinventar a roda nas reformas são fatores que causam ansiedade.
Bolsonaro já falou em renegociação da dívida. Deu uma entrevista “desidratando” a reforma da Previdência. Fala-se em mudanças tributárias que parecem ignorar uma proposta ampla e longamente discutida no país. O Mercosul foi tratado a pontapés. O “coordenador de tudo” escorregou ao mencionar juros e câmbio e, para ele, a Reforma da Previdência não parece ser uma prioridade. Vira e mexe aparece a tal “conta de juros”, uma ideia deformada que confunde alhos com bugalhos e leva o desavisado a ignorar a raiz fiscal do problema brasileiro. Para Paulo Guedes, é preciso dar uma “prensa” no Congresso que, por sua vez, respondeu com o patriotismo de sempre, mandando contas bilionárias para a viúva.
Assim passa a lua de mel. Não é preciso ter PhD para ser um bom presidente, mas faro é uma condição necessária. A falta de estudo formal nunca foi uma restrição para Lula porque ele é dotado de inteligência privilegiada, muito maior que a média dos mortais. Dilma, por sua vez, tinha formação acadêmica e deu no que deu.
Olhando pelo lado positivo, Bolsonaro foi sagaz ao desistir de fundir os Ministérios da Agricultura e do Meio-Ambiente, revelando não ser teimoso e aberto a conselhos. Aos poucos se aproxima da “velha política”, passo inevitável para governar. Deve ter se arrependido de ter criado a celeuma desnecessária em torno da ideia de mudar a embaixada em Israel. Montará uma equipe boa.
Nas reformas econômicas, precisará ouvir os lados para conter eventuais exageros, mas terá que ser muito duro para evitar que a montanha produza um rato. Se isso ocorrer será um desastre. Na Previdência, há que se tentar bem mais do que o “possível”, mirando uma economia de recursos que se aproxime da casa do trilhão no médio prazo. Ele ainda conta com o benefício da dúvida, tem a seu favor a tendência de crescimento do PIB e possuiu uma agenda econômica positiva na área de infraestrutura e com as privatizações. No entanto, o relógio não para e há muito em jogo.
Se Bolsonaro fracassar, não serão apenas mais quatro anos perdidos. A esquerda terá munição para atribuir o fiasco a concepções que nunca fizeram parte do DNA do presidente. Será a derrota de um projeto liberal que foi sem nunca ter sido.
Reza a lenda que Isadora Duncan propôs a Bernard Shaw gerarem um filho. A ideia seduziu a dançarina porque a junção de sua beleza majestosa com a inteligência ímpar do dramaturgo traria à luz um rebento com o dobro de qualidades dos genitores. Demonstrando a agudeza de sempre, Shaw baixou o assanhamento da moça ao lembrar que o descendente poderia igualmente herdar a beleza do pai e a inteligência da mãe. Nunca saberemos se o arroubo de lucidez produziu algum arrependimento, mas a união acabou não avançando. Essa anedota serve de guia para meditar sobre os frutos que poderão sair do casamento que une Jair Bolsonaro e Paulo Guedes .
O presidente eleito frequentou Brasília por décadas sem ter construído ou ajudado a construir nada relevante, pelo contrário. Lançou-se como o único candidato de oposição ao petismo com credenciais para limpar a estrebaria do Planalto Central, manipulando com destreza a fúria de pessoas de perfil moderado que normalmente rejeitariam o seu estilo e suas opiniões se não estivessem fartas da alternativa.
Ao percorrer essa avenida, o capitão logrou passar ao largo das questões econômicas que são as mais importantes para definir o futuro do país. Disse que seguiria uma agenda ortodoxa para fazer um contraponto ao PT e trazer para si a simpatia do empresariado, mas ainda é difícil saber se a conversão ao liberalismo foi para valer.
A esquerda populista latino-americana faz sucesso junto ao público vendendo a ideia de que tudo é de graça. Na ausência de normas civilizadas para disciplinar os debates, é praticamente impossível derrotá-los eleitoralmente a partir de um discurso razoável. Bolsonaro encontrou uma forma de driblar o problema, fazendo uma contraposição eficaz sem explicitar temas desagradáveis. Como ele passou quase três décadas nos porões do Nereu Ramos, sabe bem onde apertam os calos do eleitorado. O baixo clero do Congresso é talvez a melhor escola para conhecer o Brasil, mas, infelizmente, o liberalismo do século 19 não faz parte da grade.
Bolsonaro sabe que somos um povo que adora as boquinhas oferecidas pelo Estado paquidérmico. Entende que é preciso cuidar de si e dos companheiros porque todos são favoráveis ao ajuste desde que ele afete o bolso dos outros. Sob a orientação dos chefões, é na selva do baixo clero que as corporações lutam por pedaços de carniça, praticando o toma-lá-da-cá que produz os empregos de mentira, as aposentadorias precoces e generosas, os subsídios, os tabelamentos de preços, as isenções de impostos, os Refis, os financiamentos baratos, as tarifas alfandegárias, as concessões de monopólios e cartórios, as verbas carimbadas e por aí vai. Nesse Brasil em miniatura, o espaço para as ideias que Paulo Guedes aprendeu nos EUA é quase inexistente.
O presidente aproveitou a oportunidade oferecida pelas lambanças do establishment político para se alavancar, evitando discutir as maldades necessárias para salvar o país. Açulou o “nós contra eles” e, aos poucos, aglutinou em torno de si uma maioria que, se perguntada, provavelmente votaria a favor de todas as distorções que emperram a economia – pesquisas sugerem isso.
Para reforçar a zaga, chamou “Postos Ipiranga”, tomando cuidado para não encher demais a bola deles ao fazer questão de frisar que “Deus capacita os escolhidos”. Ora, se Bolsonaro é obra do Divino, é elementar concluir que os que se opõem a ele só podem ser cria do Tinhoso, facilitando a escolha. Nesse mundo fantástico não é necessário fazer contas.
Os improvisos que caracterizaram a trajetória de Bolsonaro ao Palácio da Alvorada sempre foram explícitos. Ninguém fez questão de elaborar e debater amplamente um plano estratégico para governar o país. A ideia era ganhar a eleição e depois descobrir o que fazer. A Folha de São Paulo publicou uma matéria excelente do jornalista Igor Gielow sobre os bastidores da campanha no primeiro domingo de setembro passado. A história começava com a seguinte pérola do então candidato ao senado Major Olímpio: “Isso aqui tem tudo para dar errado. Talvez por isso esteja dando certo até aqui”.
Naquele momento o dólar mirava os R$ 4,20 porque quando as coisas têm “tudo para dar errado” o mercado fica assustado. As gambiarras da campanha e a rejeição expressiva tornavam Bolsonaro um candidato frágil no segundo turno, elevando as chances de vitória do PT. Os temores eram ratificados por pesquisas de opinião que captavam fielmente os receios do eleitorado. Quando o bode representado por Haddad foi tirado da sala, os ativos financeiros reagiram positivamente, mais pela eliminação do risco de vitória do partido que arruinou o país do que por uma crença cega em Bolsonaro.
Em tese, o casamento de Bolsonaro com Paulo Guedes pode dar certo. De um lado, o analfabetismo econômico do presidente é emendado pela sabedoria do “Chicago boy”. De outro, o utopismo meio ingênuo do economista é temperado pela experiência em Brasil profundo do militar.
Que seja mesmo assim, mas muitos no mercado evitam comprar a ideia pelo valor de face enquanto não surgirem evidências mais concretas de que a dobradinha mandará bem. A turma que se viu forçada a torcer pelo capitão no segundo turno respira com certo alívio, mas agora que as eleições são águas passadas o busílis é outro.
Daqui para frente as dúvidas são saber qual é a equipe, qual o plano, quais as prioridades, quem manda, quem obedece, quem organiza, etc. A partir de agora o acúmulo de tropeços começa a trazer à mente um pesadelo análogo ao que atormentou Bernard Shaw no passado. Será que o casamento propalado como a salvação do Brasil dará vida a uma criatura com o bom senso econômico do presidente e o tino político do economista? É cedo para julgar, mas as declarações infelizes, as escaramuças com a imprensa, a atitude de confronto em relação ao Congresso e a ideia de que é preciso reinventar a roda nas reformas são fatores que causam ansiedade.
Bolsonaro já falou em renegociação da dívida. Deu uma entrevista “desidratando” a reforma da Previdência. Fala-se em mudanças tributárias que parecem ignorar uma proposta ampla e longamente discutida no país. O Mercosul foi tratado a pontapés. O “coordenador de tudo” escorregou ao mencionar juros e câmbio e, para ele, a Reforma da Previdência não parece ser uma prioridade. Vira e mexe aparece a tal “conta de juros”, uma ideia deformada que confunde alhos com bugalhos e leva o desavisado a ignorar a raiz fiscal do problema brasileiro. Para Paulo Guedes, é preciso dar uma “prensa” no Congresso que, por sua vez, respondeu com o patriotismo de sempre, mandando contas bilionárias para a viúva.
Assim passa a lua de mel. Não é preciso ter PhD para ser um bom presidente, mas faro é uma condição necessária. A falta de estudo formal nunca foi uma restrição para Lula porque ele é dotado de inteligência privilegiada, muito maior que a média dos mortais. Dilma, por sua vez, tinha formação acadêmica e deu no que deu.
Olhando pelo lado positivo, Bolsonaro foi sagaz ao desistir de fundir os Ministérios da Agricultura e do Meio-Ambiente, revelando não ser teimoso e aberto a conselhos. Aos poucos se aproxima da “velha política”, passo inevitável para governar. Deve ter se arrependido de ter criado a celeuma desnecessária em torno da ideia de mudar a embaixada em Israel. Montará uma equipe boa.
Nas reformas econômicas, precisará ouvir os lados para conter eventuais exageros, mas terá que ser muito duro para evitar que a montanha produza um rato. Se isso ocorrer será um desastre. Na Previdência, há que se tentar bem mais do que o “possível”, mirando uma economia de recursos que se aproxime da casa do trilhão no médio prazo. Ele ainda conta com o benefício da dúvida, tem a seu favor a tendência de crescimento do PIB e possuiu uma agenda econômica positiva na área de infraestrutura e com as privatizações. No entanto, o relógio não para e há muito em jogo.
Se Bolsonaro fracassar, não serão apenas mais quatro anos perdidos. A esquerda terá munição para atribuir o fiasco a concepções que nunca fizeram parte do DNA do presidente. Será a derrota de um projeto liberal que foi sem nunca ter sido.